domingo, dezembro 31, 2006

As ruas de Valparaiso

Praça Oscar de Arruda, Valparaiso, São Paulo
As apuradas ruas de Valparaiso
São singelas ruas, acanhadas talvez
(Avenida 9 de julho, a praça Oscar de Arruda, a rua Borba Gato).
Mas há em sua simetria vários rostos de pessoas,
morenas, claras, negras, trabalhadoras, brasileiras.
Crescem pelas calçadas árvores verdíssimas
(Rua xv de novembro, avenida Manoel de Carvalho)
que destacam o desenho simples de uma cidade simples,
onde, à tarde, famílias se conversam e se agregam.
Há em seu contorno de cidade forças consideráveis
Como um tecido cozido ao redor do solo
Uma translúcida veia que desenha povos e destinos.

quarta-feira, dezembro 27, 2006

Daqui eu ouço

Daqui eu ouço
O arrastar do vento.
Bate o portão
Encosta a porta
Empurra o tempo.
Estou sem voz
Para avisar o mundo,
Enviar consolo e ternura
Para quem deseja.
Daqui eu ouço
E me calo tão grande
É minha covardia.

Nunca mais

Nunca mais andei pela areia
Vermelha
Da estradinha.

Nunca mais senti o palpitar
Da vida enorme, intensa
No caminho sempre eterno.

Nunca mais olhei o céu
Imaginando o azul
Tão azul e íntimo.

Há de se dizer um poema

É preciso fazer um poema que diga:

“Décadas se passaram antes que meus olhos vissem a luz.
Grotescas sombras me habitaram.
Desleixado me guardei sobre a relva
Entre os filhos do barro”.

Há de se dizer um poema como música
Não tocada, daquelas que se prende
Em nosso estômago, nosso peito e não larga:

“Penumbras foram pintadas
na orla do teu vestido
para cobrir teu rubor”.

E o poema será como uma ovelha
Que reconhece a voz de seu pastor.

Interrupção

Apresenta-te sigilosa
Por trás das palavras
Como um campo infecundo
Que não lavras.
Sobre tua face jazem
Espinhos de corpos
Seios imóveis
De quem saiu após
A chuva
E não voltou aos olhos
Lágrima
Decepada
E turva.

Tenho fome, tenho sede

Na memória trago
Precisos sinais de fome
Fome de sangue e carne.
Na memória persiste
Teu beijo, teu umbigo
Uma tribo de canibais.
Tenho fome, tenho sede
Tenho ânsias de uma morena úmida
De pássaros emplumados
E bem-me-queres.
Sou um bicho que te encontra.

O tempo do Medo

Medo.
Ficar é apenas
Questão de tempo
Espanto
O caçador que busca
A trilha fatal
O brado
Da fera deportada
Para outros limites
Onde não há caça
A não ser ele mesmo.

domingo, dezembro 24, 2006

O mudo mecanismo

Olho a sala de novo e de novo noto a roupa sem passar sobre o sofá vermelho-sangue, comprado a prestações, pêlos deixados pelo gato na mesinha onde revistas caladas fazem ponto. De novo e de novo o mecanismo mudo tritura ossos, lábios e portões automatizados guardam o exterior desbotado que não me atrevo a olhar. Engraçado como a forma é abençoada por Deus, o Deus pavoroso que nos rasga ao meio e nos pune e nos come, o Deus das igrejas. De novo, o surdo chamado das flores, as nádegas da natureza, conflitos entre querer e se odiar por querer, entre o céu e um abismo poderoso de lama. Deus de amor, Deus de algodão, que ao vento me transpassa, salvai-me deste outro ser que também me habita, salvai-me do dia e do tempo, esta doença que corrói e não semeia.

Perto de Ilha Solteira

Aqui onde estou, nesta ponte de ferro
Na fronteira do que não imaginei,
Perto da barragem onde pequenos homens trabalham enquanto escrevo,
O sol ainda não inundou o céu de fogo
Não submeteu o sentido que procuro ou as cores do arrebol.
Na verdade eu olho e só percebo feridas, mãos no aço, formigas.
Aqui onde estou nada viceja, não há luz para se discernir o que é pedra
E o que é carne,
O que é frase e o que martelar.
Distingue-se apenas os capacetes amarelos
Dos pequenos homens concentrados
No rotineiro ir-e-vir
Sobre as armações de cimento e zêlo.

sábado, dezembro 23, 2006

1971, Andradina, à tarde

Deixar-se assim
Feito um poste
Absorto após
O canto da rua
Das linhas, pipas
Entrançadas ali
Perto do gato
Daquele fio
Onde Mauro o tal
Garoto solitário
Grudou figurinha
Cuspiu suas bolhas
De chicle rosado
Onde o pingo
Daquela chuva
(me lembro bem)
não chegou não
desbotou nadinha
apenas tocou o caule
da mamona
apenas marcou
aquele momento
perdido como uma
gota de lágrima
largada na poça
de água suja
da rua acre nº 1047,
á tarde.

Meu prisioneiro

Como conhecer-te assim,
Desnudo e sedento
Tu que me habitas
Que é meu prisioneiro
Oposto a mim em harmonia
Eu que te olho e te olho
E não te acho?

Como conhecer-te, assim,
Desnudo e sedento
Despistando meus soluços
Ó Deus, imagem do que sou
Ou do que serei
A contragosto?

Sombras

Atrás das coisas há outras coisas, há outras formas
Luz e sombra, portas e corredores.
Atrás do homem há pedras e vales
Trigo e sangue e aquele famoso rio
Que um dia mostrou o reflexo do seu rosto.
(Tudo isso o faz exatamente como é:
duro, impiedoso, sedento de sangue)
Outros muros cercam o mundo e definem a divisão do caos.
As formas são desarticuladas
Como operários famintos.
Atrás de mim há outros e outros:
Sombras de mim e dos outros anteriores a mim.

Sinal (O escandaloso céu)

O espírito busca a forma. O deus busca a cisterna e os peixes.
Habitará as cavernas
Onde algumas letras serão escritas entre
Os grotões desconhecidos, esperando
A descoberta dos homens e seu sinal de descrença.

Esteiras ficarão assombradas com o escandaloso céu de janeiro.

Campinas, 10.04.89

(Dedicado ao meu avô Eleno Raymundo da Silva, in memoriam)
Quando olhei e o vi ali
Inerte como uma pedra
As mãos cruzadas, a marca
Da cirurgia na cabeça
Algumas flores amarelas em volta,
De certo modo morri também.
Percebi que alguma coisa tinha sido perdida
No tempo, que envelhecia, que já era um homem
E que, como os homens, teria também
De passar por ali,
Aquela sala fria onde as pessoas
Choravam silenciosamente.

terça-feira, dezembro 19, 2006

Sobre uma possibilidade

Não escrevi esta tarde. É provável que as avenidas estivessem apaixonadas,
a primavera no começo, plantas desaparecidas lutando por um centímetro de terra.
Não percebi o dia. Possivelmente, a vida esgotou-se sem sequer me mandar um aviso,
sem a menor possibilidade de um sorriso, regressos ou esquinas com multidões.
Não escrevi, não desenhei passos. Ainda tenho uma espécie de jovialidade febril
que não me largou, apesar do som do relógio sobre a cômoda pintada de marrom.
A importância de tudo é o que faria, mas covardemente, não fiz.
Isso aborrece.

Sp, 19/06/03

Sempre

(Dedicado à simpática cidade de Valparaiso, vizinha de Andradina)
Faço sempre o gesto de deixar.
Para ser certo e sempre mar
para ser aberto e sempre estar.

Faço sempre o olhar de resto.
Para ser sempre lar ou manifesto
para ser sempre pesar ou funesto.

Faço sempre por trama, o tempo.
Para ser sempre lama ou lamento
para ser sempre chama ou rebento.

Sobre o amor

Meu amor é um lágrima
Uma mão acendendo tochas
Nos olhos cegos da vida
Que nos engana a todos.

Meu amor é uma lágrima
Mas já foi flâmula, foi seda
Sendo hoje apenas curta rua
Cheirando a chuva e pessoas.

Meu amor é uma lágrima
Entre seios alvos de moças
Entre as cores da estrada
O barro vermelho do sítio.

Meu amor é uma lágrima
Uma mão acendendo tochas
É somente rua, sol e vento
No colo úmido do espírito.

domingo, dezembro 17, 2006

Onde moro e existo

Na foz do rio, onde quebradas ondas desfazem-se.
No vão suado dos olhos, onde ondas se formam.
Na estreita faixa, onde correntes de dores ressurgem,

É onde moro e existo.

Na reprimida fazenda, onde plantações surgem.
Nas intrincadas missas rezadas em alto e bom som.
Nos acontecimentos próprios dos enfezados,

É onde moro e existo.

Naquilo que corto, que agrido, que dizimo.
Na porteira onde o gado muge como alimento.
Na pequena floresta, onde árvores escondem o medo,

É onde moro e existo.

Profundos mares. Profundos sons.

(Escrito na primavera de 1990)

O filho e o pai

Meu Deus
Sou aquele que bate à porta de uma cabana de pedra
dentro da floresta escura;
Aquele que atravessa pântanos sombrios e não
se desvia, e tem medo do que é novo e incontrolável;
Aquele que tropeça entre pedras, rochas,
mas não foge do perigoso escorpião;
Aquele que caminha entre homens que insistem
em lutas já condenadas;
Aquele que tenta pular o muro, mas só consegue
construir negra poesia;
Aquele que dentro da noite planta
cravos e espera colher tâmaras;
Aquele que, não correspondido, se fecha
em copas e ataca as vilas, as cidades, rebela-se
contra o dia claro e ensolarado;
Aquele que, estranhamente, não deseja
a continuidade da chuva, mas se põe a perder entre poeiras;
Aquele que, sendo filho, não busca com muita vontade o pai,
apesar de saber que o dia do encontro é inexorável.

Pirapora, 06/08/2003

Vê-se mancos, vê-se pobres e esfarrapadas figuras.
No meio delas um padre benze, clama
Como se Deus fosse cego
E não visse
Tanta miséria espalhada.

Do amor e do principe

Duas ou três vezes passei pelo caramanchão ornado de flores.
Tentei desenhar o tom do teu cabelo
- A tez de moça que se põe em guarda
Enquanto lê “No Caminho de Swann”.
Distrai-se no verde súbito da luz.
Balança a cabeça ao som do piano longínquo,
Esperando as aias e os faunos.
Mas surge apenas teu amor
Eu, príncipe sem cavalo e sem algibeira.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Sala de espera

Esperar-te.
Sentar, levantar
(que paredes são estas?)
Esperar-te. Andar. Sentar.
Olhar as rachaduras da porta,
As venezianas fechadas.
(Mas não há ponto, não há espelho que me diga: fica)

Esperar-te: uma revista francesa
Uma revista americana.
Esperar-te. Tic-Tac, tic-tac
O banco duro. Me dói as costas,
O sapato incomoda, o tédio.

Mas olha, se me pedires, acho que me jogo por esta janela opaca de fuligem mil, acho que me caço com fuzil e tudo, acho que vou embora e fico olhando as avenidas transversais, a ti, a mim, ao olhar desesperado do homem com apito, acho que me sujo todo de batom e escuto a vida e paro de não fazer nada, de freqüentar salas não muito ventiladas, acho que me molho e me molho e me molho até virar molho de espaguete, acho que me deixo sobre o armário do banheiro para eventuais necessidades e se pedires direi que a vida já não é bela nem boa, nem porra nenhuma, apenas um eterno passar de mãos no meu corpo desterrado.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Pequena oração de um condenado

O Senhor escondeu de mim a sua face
E hoje só vejo monstros, escuras servas, ladrões.
Testou minha fé colocando à minha frente príncipes e muros.
Fez do meu caminhar, o caminhar dos sedentos
A transgressão marcada como um sinal em minha testa.
Escuta me, Senhor dos Exércitos, livra-me do passarinheiro
Da armadilha dos beberrões, das impetuosas lascívias.
Escuta me, que estou cansado de trilhas e pedregulhos.
O espírito é imenso, Senhor, mas a carne é finita.
Conceda-me o dom da súplica,
Faça o ocidente tremer, e o oriente fraquejar,
Abala as estruturas do meu corpo
Vosso templo arruinado.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Cantando fugas

" Fim de Linha" - By Silverio Santos - Gaia, Portugal
Os dias são pequenas mãos envolvendo-me,
formas óbvias e sedentas do tempo
multiplicando-se
em cantigas de sol e chuva.
Componho os dias, componho
como riso e como pecado, luz matinal,
o espaço cantando fugas
mulheres loiras e nuas,
gnomos que persigo desde criança.
Submeto-me à sombra dos anos
percebo atrás de tudo o desenho da morte
princípio mudo de tudo.
O silêncio, o silêncio.

O limite e o limite

Onde a luz
Do fim do túnel?
Onde a rua,
A roupa que visto
O lençol limpo da cama;
Onde o começo
O branco dia, onde
A casa do Deus
Que nos habita,
Onde?

Esta casa é o limite
Do meu brando corpo
Que está além do que meço
E do intocável tempo.
Está para além do céu
Caminho de inumeráveis aviões.

Curta, mas eficiente

Vozes decifram o som do pulso cortado.
Se eu dissesse dor
Poucos entenderiam.
Se eu dissesse mar
Ficaria apenas o cheiro do sal.
Por isso digo morte.
Palavra curta
Mas eficiente em sua
Infinita distância.

domingo, dezembro 10, 2006

A unidade e o Deus I

Road of Dreams - By Augusto Peixoto - Porto, Portugal

Quem pode precisar, quem pode me dizer
Sobre os grandes furacões do mundo?

(desenhos vindos do satélite
mostram fulgurantes rochas, movendo-se
nos céus de saturno)

Diversos tons de sangue me congelam.
Como um cavalo, corro entre o tempo
Suado e transfigurado
Nascido de uma mulher
Inflamado de chão e folhas.

A morte é meu desenho e meu espelho é a morte.

A unidade e o Deus II

Artificial Light - By Augusto Peixoto - Porto, Portugal

Coberto pela mão do senhor sou banhado
Pela chuva (ou serão cristais?)
E procuro a resposta, procuro com rigor, farejo
O corpo de deus, o macrocosmo, a unidade do espírito.

Ad eternum, ad infinitum !
Morrendo todos os dias, nasceremos.

Fundo é o meu poço.
Quero um mar, um céu, qualquer coisa
que me nomeie
e me dispa
desta roupa insólita de carne.

Olivais

"Semelhanças" By Rui Miguel Pereira - Portugal
Qual a justificativa desta estrada por onde passo, tantas vezes desenhada em meus sonhos de menino, tantas vezes composta, como um grosso som entardecendo?
Olivais deveriam existir, mas não existem.

Estruturas cobertas de branca pintura, mulheres despidas, trazendo na mão uma taça de vinho.
Onde estão, quais os frutos que morderei?

Âmago. Revestida pele do real.Profundo, como a alma que me carrega.
Mas já não creio, já não creio em emblemas, continuas ondas no mar de centeio.

Letras desenhadas

"Memorial" - By Phylos
Minha cidade,
Bancos vazios na pracinha cinzenta,
Palmeiras ao vento, tendo ao fundo
Um pedaço do céu encimesmado de junho.
Conheço bem o som do canto:
Meus passos ressoando na ruazinha
Perfumada pela chuva, em Andradina;
O tempo parecendo um doce de algodão
Suculento em minhas mãos;

Meu lugar marcado no sofá velho
Onde lia meus livros,
Antigos contos de Edgar Allan Poe, poesia
E imagens de outras ruas,
Outros olhos, olhos de quem se espanta
Com os pequenos detalhes
Que compõem um homem
Letras desenhadas no portão de madeira verde.

sexta-feira, dezembro 08, 2006

Na pedra lisa escrevo teu nome

Rough Road - By Augusto Peixoto - Porto, Portugal.
Na pedra lisa escrevo teu nome:
Trevo de quatro folhas.
Estranho ninho ali desenhado
Como era moda naquele tempo antigo
Quando filósofos brilhavam no amor.
Luminosas lendas formaram-se.
Muitas vezes acordei no meio da noite
Em crise, à procura do milagre e das linhas
Silhueta morena de uma mulher numa moldura.
Reconheço-te agora.
Dona de uma boca saliente, rosa na tenda escura
Meca onde orações são desenhadas.
Farta cor de café. Botão de lírio.

A dialética do professor de estética

Entre o lírico e o onírico,
Entre pirâmides e porções de deuses
Entre fogos, gritos e selvagens tatuados;

Entre articulações e eminências pardas
Edifícios laterais, escadas colossais
Entre peixes e anêmonas coloridas;

Entre a afirmação e a negativa
Entre o sol e o sal
Entre o caos e o céu.

Em mim
Apesar de tudo.

Deixei Andradina quando o dia se findava

Deixei Andradina quando o dia se findava e lançava sombras
preguiçosas sobre a Avenida Guanabara.
Pés-de-araçás balançavam e idosos tomavam refresco
Em cadeiras de balanço, nas calçadas imemoriais.
Deixei a cidade e não olhei para trás.
Mocinhas caminhavam tranqüilamente sobre o macadame
E as madressilvas cheirosas como seios reinavam sozinhas.
Prestigiosas comadres faziam planos, discutiam doces
Estudantes desfilavam pelo portão da escola em aventais brancos
E calças azuis da cor da poesia.
Virei o carro, aguardei na pista da Marechal Rondon
Onde o vento desenhava amarelinha em minha mira
E apontei em direção a São Paulo: 670km de asfalto,
Cortando meu angustiado coração de caipira.

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Casamatas

Busco o trabalho dos corpos, quebradas corredeiras
fluindo das pedras
Que pintam a cidade de verde, cor da esperança.
O trabalho desenha consideráveis prumos e edita
poemas estáticos
E aceita poetas intocáveis, fantoches de Deus,
Fechando em casamatas soldados que ousam cantar.

A morte nos rodeia, pobres poetas que somos,
A fome nos quebra. O alimento que nos sustenta
São as palavras trabalhadas fluindo de plantações
No vão diário das lamentações

Incertas flores

Longo é o peito e crua é a forma
Onde bizarras loucuras quebram cadeias,
Amores cegos
Na tarde decadente de inverno e ferros cortados.

Longas são as mãos que tocam desbotadas flores
E sujam o quintal vermelho de sinais
E voam e caem
Como borboletas desqualificadas me invadindo os olhos.

Longos e imortais são os instantes, os poemas
As grafias sonolentas escritas na folha do tempo.

Atravessam os campos, cemitério de cruzes
Esquecendo o peito amargo e sedento
De onde nasceu, caminho incerto de flores.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Considerações sobre Órion

Além de Órion, a estrela, o tempo faz-se mero detalhe, e cavalga-se num cavalo alado puxado por corcéis de branca pelagem, e busca-se o riso, o esquecimento da dor, a mulher debruçada sobre a cama enfeitada, noiva eterna, risonha e esperançosa.

Além do céu, o profeta Elias não viu Deus nem viu as bolas de fogo conduzida por anjos, as quimeras que sempre me enganaram e que ali ainda existem, sorrateiras mãos, trilhas mal desenhadas, nuvens que parecem pequenos bichos e que eu via quando era criança.

E no trono, sobre Órion, sobre Vésper e a constelação de Touro, Capricórnio, Tau Ceti, o antigo de dias, o Senhor dos exércitos, tendo a sua direita o poder e o Verbo, o anel de luz, que a todos nós ilumina e transpassa, mas também eterniza, como estátua marcada a ferro e fogo, como um poema.

As jardineiras

As jardineiras exalam cores brilhantes pela sala.
Num canto, os livros compõem um quadro colorido.


A vida se manifesta diminuta, escassa, esperando a mão
Que a fará gigante, que a fará vazar extravagantes selos.


O gênero de existir pareceria fosco se não fossem as janelas
E o além da janela, o além do quintal, o além do estado.


Porém, falta-me uma mão, falta-me uma sílaba,
Para definir as grossas raízes que me violentam.


Os tubos cerâmicos ornados de sangue
As maneiras e jogos que a vida insinuante me propõe
E que eu não compreendo.

As costas do mundo

Vestido de esplendor e majestade,
Construo meu tempo sobre um monte
E nele observo as costas nuas do mundo.
Vestido de planta, musgos e água fria,
Atravesso longos pastos, onde a diversão
É correr entre os carneiros, perseguir o vento
E lançar olhos ao longe.
Vestido de luto, ás vezes me observo,
E tento, e corro, e pulo
Parte integral do enorme azul que me destila.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Certa noite, em 1973, próximo à linha do trem

A bicicleta avança, abrindo caminho pela noite estrelada de Andradina,
O homem ofegante volta da igreja, suado pelo esforço e pela bíblia.
Sob o mesmo céu, Órion planta-se no vasto quadro pontuado,
Epsilon Eridani continua invisivel
E Deus olha absorto a linha do trem, as pedras
Os casais amando-se na escuridão, sobre os trilhos,
Ameaçados de morte entre o gozo e o riso.
Capim verde em torno da linha, quase invisíveis na noite quente.
Um cão late, alguém bate o portão.
Andradina dorme, sob o som do Tênis Clube
Ricos bem vestidos entretidos em festas e banhos de piscina.
Sentado na calçada, penso no que ainda não vivi
A cidade, a partida.
Passam casais pela rua, ao som dos Incríveis
Levanto-me.

Pequeno campo cultivado

“Além disso, meu filho, preste atenção:
Escrever livros é um trabalho sem fim”

Tal está em Eclesiastes Cap. 12, Vers. 12.
Choro muito, meu pai.
Grito muito, e meu grito é lançado pelo imenso mar que é meu peito.
Calado, o grito se espalha.
Choro muito, muito,
Assistindo filmes de amor, ouvindo músicas românticas
Lendo textos piegas, lanço lágrimas piegas.
Desenho dentro do mapa confuso que sou,
A imagem de um homem desconhecido.
De rascunho, vira contorno.
De tênue, vira obra de traços e pontos.
Calado, mas presente no tempo e no espaço:
Entre flores.

Pesadelos de meia idade

Tenho tido sonhos estranhos, explosões, choques de cores, escadas dentro de florestas abissais.
Tenho tido suores, tremores, crises de choro, como um homem abandonado na tarde declinante de março, entre as chuvas e as enchentes sazonais.
Tenho tido urgência em dormir, ás vezes, em não dormir, desassossego, tenho tentado ler numa pedra o desenho de um parto.
Tenho tido dores, as mãos trêmulas, convulsões vespertinas e solenes com mocinhas despudoradas.
Tenho tido imagens bucovskianas, sedentas de paixão, de gozo, gritos, trancos, cheiros, ruas, sons, flautas, domingos, chão, velhos, peões, espelhos, a pracinha à tarde, o tom rosa púrpura do dia.
Tenho tido anseios quarentões, brigadeiros suculentos de chocolate comidos à escondida, o mistério do Deus descortinado.

domingo, dezembro 03, 2006

Diagrama nº 7

Há meses uma dor me atravessa o peito.
Parece um golpe de fogo
Espada flamejante de anjos
Armagedom de ossos e sepulturas.
Há meses uma dor me esquarteja
E suja de sangue toda a cidade
As pessoas em seus carros blindados
Putas
Pequenos mundos jogados na água
Imunda água que não nos lava.
Há meses uma dor me violenta.
Vampiros de longas caudas me sugam
Morcegos usando ternos
Feitos sob encomenda
Comprados na Oscar Freire.
Há meses, senhores, há meses
Uma doença me consome
Câncer, peste, olhares mórbidos
Bichas esqueléticas que me encaram
E me mostram a língua.

(Mas sonhei com uma estrada
Eu no meu carro, o vento de uma cidade
Deserta e seu saloon desfigurado,
O mocinho e seu revolver matando o bandido.
Não havia pedágios nem guardas
Loiras desnudas caminhavam
Oferecidas e vagabundas.

Lentas vacas pastavam, dando leite e mel
Como a antiga terra prometida.
Cafés limpos, miraculosamente limpos
Enfeitavam a estrada, os postes hirtos
Não eram sujos,
Não havia buracos
Nem mendigos.
Não havia percevejos nem piolhos
Não havia homens maus, nem vexames.
Apenas a estrada infinita
Eu e o tempo, a velocidade das horas
Flores mortas e murchas
Cidadezinhas minúsculas e aconchegantes,
E as vicinais marcando o verde
Como veias amarelas
Levando o sangue das fazendas).

Havia a quase mortal parada das frutas
O velhinho desdentado cavoucando a terra
Uma criança vendendo doces no meio-fio
E sempre, sempre havia o futuro
Em minhas mãos
Solenemente abertas
Em direção ao sol.

Da dama da noite e seu perfume

Respiro o ar da noite tomado pelas damas cheirosas. Lembram-me das noites Andradinenses, valsas que só existiam em meu peito de menino. Cercas brilham e compõem o poema, acertam milhares de pombos, acertam centenas de palavras e mesmo assim resisto, as escrevo, rebelde que sou. Enxames me atacam, as caudas acesas iluminando os campos, pirilampos noturnos retocando o poema e grito que vivo permaneço, ainda que pobre, ainda que sem outro abrigo a não ser eu mesmo

Vestal

No entardecer acendem-se luzes, altares luminosos guiam navegantes mostrando refúgios de pedras, de bons tijolos. A rosa mística do céu se abre e nos mostra seus pistilos cor de sangue, cor de virgem, vestal amedrontada. Lentamente a noite enferma se aproxima, empurrando o entardecer para outros campos. Deuses nos saúdam desde o oriente, subitamente alegres pela próxima escuridão. Meu corpo despreparado e emudecido sangra poemas.

Borboletas

Pacientemente, construo e reconstruo.
A roupa tem rasgos, linhas mal alinhavadas.
Veste corpos trabalhados, vituperados corpos de homens sujos,
matéria do tempo, o cúmplice sonolento da morte.
Construo e destruo, simultaneamente.
A rota do que acredito passa pelas minhas mãos de memória.
A massa não tem sentido, o céu não tem sentido e a tarde me queima,
Exige uma resposta que ainda não tenho.
Além, só as cruzes e os arranha-céus desbotados,
Calçadas sujas, imundas faixas incolores
Engendram a cidade como terminais em assimétricas bases.
No entanto, pessoas caminham e buscam suas casas, seus ônibus
Desconfortáveis, seu sexo sem gozo. Círculos são construídos e implantados.
A mente já não se revolta, já não grita nem ordena.
Cíclicas muralhas cresceram, estou à toa
No meio da rua, entre os carros, em plena avenida berrando.
Aplico na cidade a plena amizade entre os homens de boa vontade,
As boas ovelhas, Jesus Cristo, embriagado, urinado embaixo da marquize.
Construo e destruo, simultaneamente. Chuto pedras,
que transformam a trilha em perigosas armadilhas
O parto se aproxima, a criança tenta respirar, mas morre asfixiada.
Pertenço ao mundo dos homens, pertenço às plantas, calvo e feio,
desfigurado, não acredito no Deus das sinagogas,
nem em cortesãs ruidosas de amores pequenos.
Fabrico tecidos com minhas mãos de aço, punho de almíscar.
Verdadeiras nuvens servem de pasto, o céu azul da metrópole
é resquício da sanidade que tento não perder.
Borboletas. Pandeiros.
Moças loiras sorrindo à porta do banco
Lindas borboletas. A superfície do que sou pertence ao divino.
Isto basta.
Construo.

sábado, dezembro 02, 2006

Campo de aviação



Penso numa cidade quase Andradina
De trinta anos atrás, ruas de terra vermelha
Jardins nas casas pintadas de cal,
As meninas carregando latas d’água
Vestidos de chita florida, pequenas onze horas
Nos dias longos de chuva e sol.
Penso, mas logo me surge um certa poeira
Um vapor vermelho, que não defino bem, não sei se é o tempo
Ou se é minha memória que já não traduz
Com exatidão as imagens amareladas.
Vejo alguém andando na poeira, sob o sol de trinta graus
Tão comum em Andradina, no bairro de Santa Cecília
Próximo ao campo de aviação,
Alguém descalço, menino moreno com estilingue na mão, olhando boquiaberto
Os pés de mamona invadidos pelos passarinhos.

(Do livro "Soldado à beira da fuga", Editora Alaúde, 2005)
http://www.livrariaphylos.com.br/

sexta-feira, dezembro 01, 2006

Outsider

Quinta. Acordo com dores, olheiras, desenhos inúteis nas mãos de poeta, sem luz na janela, o dia já cheirando a mofo. Dia após dia construo o homem dentro de camadas de gelo, às vezes deteriorado, às vezes tendo no rosto um sorriso cínico de quem já não tem mais fé. Bebo quantidades enormes de água. Talvez me limpe, talvez meu coração fique alvo como a neve que nunca vi, talvez fique singularmente triste, talvez fique pesado como calhamaços de poemas infelizes. Tenho pouca fé, homem que escorrega e não tem uma escada qualquer, nem corrimão que ampare. Talvez seja tudo um jogo, talvez as cartas todas sejam um blefe, tese conceitual leibniziana com gosto de Bourbon. Coisas se arrastam, tateio, luto, persisto. O dia insiste em me levar, insiste, ó deus, em me fazer levantar e abrir as persianas. (Jean-Luc Ponty em cada unidade do meu ser o som eletrônico, o cd já arranhado de tanto tocar). O terno me espera, a gravata. Cedo partirei, e as ruas serão mapas sem significado nenhum, apenas garatujas de um escritor louco escrevendo sobre a cidade. Minha única chance sou eu mesmo. A ânsia de viver é mais forte que a textura ínfima da luz. De vez em quando rio, sem saber exatamente o porquê. Mas rio assim mesmo, dos mendigos, dos carros, trânsito violento das notícias apavorantes que me dizem menos cada vez menos, cada vez menos. Além de mim o vasto mar de prédios, brancas estruturas de aço, lâminas, flechas fincadas sobre o solo de Deus. Ferido, continuo; ferido, mantenho os olhos fixos nas janelas da vida na mulher, na criança de rua, suja e desesperada. Como a vida. Meu pai, qual é a solução desse enigma?

Uma floresta e um reino

Vivo sozinho. O meu quarto não tem a alegria floral de uma jarra fagueira”.

Murmurações, Menotti Del Picchia, Edição de 1958

Não há beleza nenhuma neste reino. Sempre o mesmo silêncio desenhado,
passos que vão ninguém sabe para onde, murmúrios do lado de fora,
gente rindo, um cão que late ao longe.
(Vida chata tem os cães à espera de um afago do dono).
É como se fosse uma floresta imensa cercada de muros, escuras fontes, caçadores
andando em busca de água e olhando as frestas das árvores milenares.
Não há beleza neste reino caótico de chuvas, relâmpagos e trovões, cavalos correndo,
cavaleiros pálidos trajando negras capas. Não há nada, não há nada que se perpetue
neste reino onde me limito e onde estacas atravessam-me.
(Como demoram a passar estas horas).