quarta-feira, agosto 20, 2014

A LUTA QUE TRAVO COM DEUS

Ás vezes procuro Deus na estrada
E observo o lusco-fusco dos carros que vão e vêm
Numa interminável teia multicolorida,
Como pirilampos enlouquecidos pela noite.

Ás vezes procuro Deus numa criança,
Que brinca e esperneia, ri e chora,
Sem saber ao certo do que se trata a vida
As pessoas a sua volta, e seu mundo se resume
A coisas simples, pequenas, básicas,
Como o amor dos pais, o comer e o dormir.

Ás vezes procuro Deus nas pessoas que vejo,
Algumas sombrias, algumas desconcertadas
Buscando, elas mesmas, este Deus tão desejado,
Em igrejas e livros obscuros que não levam a lugar nenhum.

Mas Deus, percebo, está em mim e quase sempre se debate
Entre o Bem e o Mal, entre o Dia e a Noite
Luta entre o Estar e o Não-estar.
Descansa seu corpo entre pequenos detalhes da vida:
Um palito, uma nuvem, um movimento na rua,
Uma escada que sobe, uma ave que desce,
Uma revoada de andorinhas como as que eu via em minha terra
E nunca mais vi aqui na cidade grande.

Deus está em mim, mora em mim.
E me empresta seus olhos para que eu veja nas coisas que me cercam
Sua silhueta desenhada nesta coisa medonha e terrível
Deliciosa e amarga,
Que chamamos Vida.

sábado, maio 31, 2014

ANA MARIA E OS POSTERS



Me rebelo contra o dia, seja qual for
A verdade dele,
Minha avó Mazé fazia colchas de retalhos.
É estranho como em mim o efêmero persiste.
Um quadro incompleto de cores
E formas,
Um borrão, como o retalho, o ponto em branco
Onde escrevo e sonho.
Contrafeito e louco, admiro a
Vaidade dos homens,
Procuro o sobrenatural, o juízo perfeito
Como os rododendros que a menina desenhava
Em seu caderno cheio de estampas e posters
Nos anos setenta.
Linhas onde trens às vezes se confundem.
Linhas da mão, ciganas e frouxas,
Troncos tortos, o paradoxo da vida e da morte
A mesma moeda que se joga,
Mas não se sabe onde vai cair.

A REPRESA



A temporalidade é o que se lança
No nosso rumo, a história de nossa própria divindade.
Deuses? Talvez, 
Mas o esquecimento é o descanso,
O necessário sermão que o espírito dá ao pó:
Corpo, decomponha-se, 
já não preciso de ti,
Fui seu dono momentâneo, te limpei, 
te vesti. Mas a comporta que foste não és mais,  sou livre.
Durei enquanto pude, férias de sol e luz.
Apenas o tempo é mestre,
Ninguém mais.

quinta-feira, março 13, 2014

POEMA AMÁVEL



Sem mais delongas
Um desconhecido rumo se configura
Em minhas mãos, desenhando a trilha.
Falei dela, deslizo por ela, mesclo-me a ela.
Mas se lhe juro amor, apenas brinco, apenas,
Deslizo pela linha tênue entre o desistir e o continuar.
Ela me olha e diz: sou o tempo, não há fuga, não há
Tristeza que não corrompo, nem alegria que me resista.
E vejo então, que o desenho está borrado,
E que não há ofertas:
Sou puramente humano, mesmo se não a amasse
Mesmo que a trilha dissipasse em mim
As travessas e os incômodos passos.

VASTOS ENCANTOS



A atenção do lírio me desafiava
Apagava minhas últimas flores
Silêncios atávicos que pareciam conversas
Embora no ar enrubescia de cólera e perfume.
É uma promessa numa Andradina que já não conheço,
Um encantamento menos que a morte,
Turvo e letal, trêmulo e menos mal
Que uma jardineira em flor.
Não se conhece ninguém que chore
Ou ao menos responda
A estes pedidos de socorro que vejo nos prédios brancos
Da Avenida Paulista anoitecendo.
Mas de vez em quando o céu se insurge por trás das pontes
E aparecem uns rasgões inconsequentes
Pequenos atos de humanidade em meio ao cimento.

É  a vida pintando-se de outra forma
Um segredo entre nós, os homens turvos e Deus.

Á SOMBRA DE UMA RAPARIGA EM FLOR



Não tem nenhuma importância
Se eu soube quem havia pronunciado meu nome
Ou até mesmo quem se despediu e tomou o barco da vida,
Tendo a sorte e o sussurro da noite à sua volta.
Jamais saberia se o cheiro do mar no estreito azul de Bombinhas,
- De uma solidão insuportavelmente gentil e próxima -,
Significava o adeus, ou quem sabe, a ponta distante do mar.
Não tem nenhuma importância se uma pequena ave pousou
Entre sua figura acesa e inclinada no espaço,
Ou se mal enxerguei o vislumbre distante da aldeia branca
Que secretamente lutava contigo,
No quadro colorido de tua partida.
Que eu sabia, nunca mais
Teria retorno.