quarta-feira, janeiro 30, 2008

As escritas cor de canela

(Foto de Manuela Pestana - Funchal - Ilha da Madeira - Portugal)

A antiga historia se repete
Sempre da mesma forma:
À tarde a mulher ergue o rosto
Limpa o suor da testa
Olhando o dia morrendo
Atrás do morro prenhe
De feijões e milho.

Algumas vezes encontra
Entre as valas de sementes
Tulipas espantosamente
Simétricas e indecorosas
Jogadas por algum pardal
Declaradamente sábio
Sabiamente distraído.

Ramagens sombrias
Cercam as vezes o fiapo
De flor que se esmera
Em subir pela palha
Do milho amarelo
Pescado pelo vento
No dorso acomodado.

É a mesma e velha historia
Que eternamente se repete
Onde a finura do caule
De uma planta fugaz e sutil
Carrega no bojo outra mais leve
Certos talos, certas mudas
Invadindo os morros e as tardes.

Gravura resplandecente
da mão de Deus
e suas escritas cor de canela.

A velha estação e seus trens


Seja o que for, a possibilidade
É sempre de sumir entre os trigais
Estradinhas vermelhas ou simples
Rotas de algodão maduro

A fascinante estação ferroviária
Hoje jogada às moscas já foi
Território risonho de caçadas
A jecas e velhinhas assustadas

Silvos distantes da máquina velha
Fungando sob os trilhos centenários
Criavam fábulas nos meus olhos
Em torno do qual as horas eram

Anos atrás os pontos brilhantes
Dos seus faróis ainda acendiam
Os adeuses de homens e mulheres
Na plataforma corroída pelos anos

Suas luzes eram fogareiros plácidos
Nas noites de São João e fogueira
Quando o gostoso mesmo era afagar
A menina loirinha da casa de baixo

Hoje é gravura na parede do prefeito
Galopando em trilhos amortecidos
Mantas escarlates desenhadas
Em um rio qualquer, que secou

Cerejeiras em flor

(Foto "A flor e o reflexo" de Reynaldo Monteiro - Rio de Janeiro - Brasil)

Mantenho a promessa que fiz
Sob as cerejeiras em flor
Naquela noite aguada
Desenhada em vinho

Mantenho porque sou o mesmo
Mesmo debaixo de nuvens de aço
Aroma de laranjas e colunas de ferro
Perpétuas celas onde me tranquei

Mantenho a promessa, sim
Mantenho, mesmo imperceptível
Entre os passageiros do trem
Enfeitado com toalhas de linho

Mil quilômetros me separam
Daquela noite fatídica
Púrpura, elegantes damas
Vestidas de veludo e seda

Espalhei pelos cantos pedaços
De mim mesmo, desordenado
Coberto de restolhos sórdidos
Ouro desmaiado em latas

Mantenho porque ainda resta
Bosques, cerejeiras em flor
Magníficas carrancas azuis
Desordenadas faces e rochedos

Aqui fica meu tempo.
Matizes e crostas plantadas
Nas catedrais de barro
Onde sedento me sustento

segunda-feira, janeiro 21, 2008

Olivais

Qual a justificativa desta estrada por onde passo,
tantas vezes desenhada em meus sonhos de menino,
tantas vezes composta,
como um grosso som entardecendo?

Olivais deveriam existir, mas não existem.
Estruturas cobertas de branca pintura,
mulheres despidas, trazendo na mão
uma taça de vinho.
Onde estão, quais os frutos que morderei?

Âmago.
Revestida pele do real.
Profundo, como a alma que me carrega.
Mas já não creio,
já não creio em emblemas,
contínuas ondas
no mar de centeio.

Mare Nostrum

O cachorro ladra no quintal.
Sopra um ventinho morno de interior.
No portão há uma marca de dedos
e na calçada desenhos de amarelinha.

Atrás das casas uma lua,
uma lua tão grande
que parece me engolir
através das antenas assustadoras
de televisão.

domingo, janeiro 20, 2008

O dicionário e a resposta

Espera-se um milagre sob esse céu de pérola.
A tarde adianta-se no horário de verão,
aguarda-se um sinal nas placas verdes de trânsito
que defina e estabeleça o poder de Deus.

Nada há em particular que distinga pálidos rostos.
Luzes não se acendem.
Um incerto mal-estar me dita horas.
Onde está o dicionário do tempo?

Fictícias flores enfeitam muros,
o homem sou eu, mas onde o turvo rio deságua?
Aguardo uma resposta meu pai,
com urgência e amor.

quinta-feira, janeiro 17, 2008

Rua Acre, 1047

(Na Rua Acre 1047, no Bairro de Santa Cecilia em Andradina, interior do Estado de São Paulo, passei minha infância. É interessante como uma moradia simples, rua de terra na época, alcançou esferas míticas em meu imaginário. Outro dia vi Gilberto Gil em sua cidade natal, falando de sua infãncia em uma pequena cidade da Bahia. E vi sua emoção em falar de momentos passados. O que acontece com esses dias de infância? Por que ficam marcados como cera quente em nossas mentes? Mistérios......)

Tenho uma lembrança nítida da varanda,
do mangueiral e do chão vermelho, tão próximo.
A casa era verde-claro, alguns degraus, um jardim,
um cachorro chamado Sultão que morreu vomitando sangue;
uma cerca velha, um varal cheio de roupas
alvejadas no quarador.

Às vezes passava um avião e eu não entendia
como um objeto tão pesado conseguia voar.
Dona Maria era nossa vizinha, negra forte de dentes alvos.
Seu Olívio, seu marido, bebia muito e trabalhava
na Prefeitura pavimentando ruas,
mas nossa rua não era pavimentada.

Havia também um pé de goiaba, um pé de abacate,
de urucum e de mamão vermelhinho.
Eu ouvia muito falar no mar e morria de vontade
de deitar na praia fazer castelinhos na areia
como via nos filmes da matineé no Cine Santo Antonio.

Tenho uma lembrança nítida dessas coisas
que estão hoje tatuadas em minhas mãos inquietas de homem.

quarta-feira, janeiro 16, 2008

Expressão diuturna

Luz, quase noite.
Latitudes estão demarcadas
sobre a pele vestida de gente.

Não é dia nem hora para desculpas.
Há vozes entre as ardósias recém-colocadas,
Pequenos pingos e vagas sensações.

Deus, me traduzindo as coisas
mais ou menos exatas.

Encomenda

Leve consigo a amostra
das ruas quebradas
sondagem vã de corpos
gineceus ambulantes.
Leve consigo,
toda compaixão comportada
para confortar, equilibrar
muros de pedras adiante
gigantes.
Leve a tí mesmo.
Dentro da armadura de carne
mora um sonho.

Do meu lado, o escuro

Ao lado da estrada havia um quadro.
Melões enormes, mangas, goiabeiras,
o dedo de Deus desenhando as plantas,
o sol do meio-dia, o sono do viajante
perdido em seus próprios passos.
Ao lado do quadro havia um homem.
A armadilha concentrada em gotas,
um hexágono desenhado na mão
de um solitário sol.
Ao lado de mim, o escuro.
Nem Deus, nem sol, nem norte.
A aparência das coisas meio abobalhadas,
fragmentadas dentro de mim, contos,
histórias, poemas que eu nunca deixei de amar
- apesar dos homens e das pedras.

Pensando no Rio São Francisco

Quatro léguas adiante
o rio desenha-se melhor na terra.
Os peixes parecem maiores.
Os barqueiros lançam suas redes
com mais empenho.
Faulkner diria melhor,
desenharia na frase toda a poesia
Do rio e de seus mensageiros.
Faria uma fotografia de seus afluentes
Do povo moreno de suas margens
Elevaria o rio à quintessência
Da prosa.
Esperemos que a tarde nos faça sonhar.
Que a noite nos mostre o céu e seu manto.
Homens estão aqui, neste momento,
tentando escrever no rio
as suas preces.
Eu escrevo a minha.

terça-feira, janeiro 15, 2008

Nublados de chuva

Desfilo por imensas ruas,
labirintos mal desenhados
onde não se distingue nada,
nem corpos.

Pálidas casas ou muros altos.
Uma velhinha caminha,
curvada pelo peso dos anos e o vento,
o vento assopra,
fazendo redemoinhos nas esquinas,
pequenos castelos.

Além do horizonte, o tempo.
Desenho frágil em minha face,
as rugas, os olhos
já nublados de chuva.
Assim caminho.

Uma vez por mês

Admito que acontece, às vezes,
um aviso em meus ouvidos,
um clarão encimesmado na noite,
um som de rádio ligado,
uma descarga de madrugada,
alguém falando, falando,
o silêncio imenso de mim mesmo
me fazendo em pedaços.

Reconheço que o ensino é factual,
que a rua não é minha,
o chão não é meu,
nem são minhas as figuras
abobadas que, diuturnamente,
desenho.
Tampouco me arranjo aos domingos,
não visito igrejas,
desconheço qualquer deus
que não seja bom nem invisível.

Mas uma vez por mês solto um grito.
Uma vez por mês me debato
entre o absoluto e o não-descoberto.
Uma vez por mês saio às ruas
e sorrio como um hipócrita:
creio em destino, na sorte e no governo.
Apenas uma vez na vida
tenho um ar firme e ousado,
atravesso pontes.

segunda-feira, janeiro 14, 2008

A escassa luz

Em certas horas da noite há um barulho de vento no assoalho
Há uma couraça, algo moldado à nossa própria imagem
Muitos povos morando nesta imensa rua amarela e só

E muitas esquinas que ainda não foram sequer visitadas
Mas depois de algum tempo olhando a enorme lua diária
Percebemos que somos presas fáceis no retrovisor do tempo

Olhando as coisas com uma lente de aumento gigantesca
Aumentando a escassa luz que engatinha no escuro
Tentamos nos desculpar pela imagem desfigurada

De um velho livro opaco encadernado em couro
Abandonado na mais funda e obscura das gavetas
Onde escrevemos nossa história, nem sempre humana

quinta-feira, janeiro 03, 2008

Nada é mais espesso

No carro, o tempo é compassado pelo vai e vem
Dos limpadores,
Deixando ver, ao longe, a curva
medida crua de espaço.

Em geral os clichês são verdadeiros
E os círculos se fecham abismados
Sublinhando lugares e contos
Rasgando as serras e os vales que se desenham
À frente.

Retorna-se a antigas casas, extensões de corpos
Papéis antigos sobre a mesa esperando a volta
Pneus marcando de negro as trilhas.

Nada é mais espesso que o sangue
Misturado às lagrimas.
Nada é mais mortal que o mergulho
Em coisas não reconhecidas
Invisíveis demais para serem colocadas à mesa.

A menina magricela

Permanecer assim, preciso e fatal
Na sonolenta esquina das horas
Onde o vento sopra molemente

Onde as vias são retrovisores
Embora se percam no azul
Da rodovia.

Embaixo do céu clássico de janeiro
Primeiro se vê uma mulher jovem
Encarando o horizonte e as coisas

Escondendo a face detrás das mãos
Parada, abrindo os olhos espantados
Vendo os sinais.

Depois a chuva batendo verticalmente
Açoitando uma inscrição no poste
Que fiz há muitos anos, colei um chiclete

Deixando um bilhete para a menina
Magricela da casa em frente
Que hoje sequer me olha.

Sem fruto ou dinastia

Foto do mineiro Claudio Marcio Lopes

Não tem nenhum valor que falemos da dor
Do envelhecimento nobre após os quarenta
Da conduta mais ou menos sensata da fome
A descrição insossa da vida a nos devorar

Há um palácio real onde se grita e se ri?
Há seguras fontes onde a forma não se altera?
Quais as diversas maneiras de se exaltar?
É real o fogo morno que nos alivia e pondera?

Não tem nenhum valor que falemos da dor
Nem costumes há que nos livre do caos
A semente merecida não nos transporta ao céu
Não há serventia para o pobre ou para o velho

Mas me diz alguém:

" - é como uma casa sem meninos e sem cores
chão sem verde, árvore sem fruto ou dinastia
praças inertes de gritos ou musicas abortadas
ideograma de sons totalmente imprecisos"

E então religiosamente casto eu me calo
pois se não sei, o desprezo dos outros me incomoda
ergo uma urna funerária sobre o rosto
e me recolho, e não mais me declaro.

A grande alma sacrificada

Não se sabe se o que resta
É apenas recato ou cores
Beijos dentro da noite pasma
Pedaços de maçãs verdes

Não se sabe se o que resta
Enche vastas plantas ou sóis
Vórtices enlouquecidos
Seduzindo profanos faróis

Não se sabe, aliás, de nada
De todas as propostas vãs
Os socos na parede, a raiva
Ensandecida e verdadeira

Não se sabe, não se sabe
Não se sabe sequer de duas
Ou três pequenas criticas
Na melancolia do dia

Não se sabe se o que resta
Atribui-se ao tempo, a grande
Alma sacrificada e louca
A todas as artes e seduções

A posse de todos nós é o Tempo
As sandálias de um bela mulher
A elegia e o lirismo do corpo
Divino e sofrido, nunca derrotado

terça-feira, janeiro 01, 2008

Código

Longos cílios enfeitam seu rosto. A sombra
Dos olhos decifram códigos
Que só os meus entendem:
Longas horas de pausa
Depois do incesto.

Mas se somos irmãos então não pecamos.
Se não somos, apenas nos perdemos
Um no outro
Feito um sonho
Dentro de outro sonho.


Julho/ 1987

Frases destas vorazes

Se existisse um céu, qualquer um
Que não fosse luz e santidade,
Mas frases destas vorazes
Nos engolindo inteiros,
Deus nos olharia de lado
E sua silhueta nos deixaria meio bobos
Nossa face santa e esbofeteada


Outubro/1984

Cor maldita

A palma da mão decifra
Outonos
E negras formas
Mulheres sedentas
E homens famintos
Seguindo a rua, o asfalto
Recém pintadas portas.

Até certo ponto
Não me toca
Esta cor maldita de fim de tarde
E a palma da mão enxuta
Serpente absoluta
Cercando
Meu coração
Marcado a fogo.


Janeiro/1984

Um leve sabor

Atualmente existe uma linha poética, considerada moderna, que acha que não deve haver "derramamento" no poema. Ou seja, nada de sentimentalismo tolo, piegas, apenas e tão somente a técnica.

A alguns anos atrás, cometi este pecado, criei alguns textos que hoje estão desatualizados, porque são "derramamentos" claros.


Sinto no ar um cheiro de lágrimas nesse momento
Em que o sol morre e morro junto com ele.
Há nestas tardes algo triste que me consome
E não consigo explicar, que me deixa distraído
De olhos brilhantes olhando para o vazio.

Sinto no ar um gosto de sangue.
Sou cativo destas tardes de outubro quando vejo
De minha janela as aves descerem para a rua
Em busca de alimentos, me lembrando
Do que devia ter esquecido e enterrado.

Já não sei o que quero, nem se sofria
Antigamente mais do que sofro agora.
Tenho vontade de ser eu mesmo, livre
De qualquer coisa, solto no tempo,
Um homem frio e calculista, pronto
Para destruir. Mas só sinto no ar
Esse cheiro cruel de solidão,
Sentimentos reles e becos imundos.

Preciso me livrar dessas tardes inquietas
Em que me sinto observado por olhos
Invisíveis e saturado de tanto amor.
Tenho urgência em não chorar: já cansei
De ter idéias fúteis, sonhos fúteis.
Só sinto no ar esse cheiro forte de choro e morte.


São Paulo, 13/10/1982

A carta do suicida

O que acontece
agora
nesta tarde morna
tranquila
nas estradinhas
de longos passos

Nesta tarde morna
em que tantos
morrem
e tantos choram
imagino o que acontece
dentro
de um país distante

Neste momento
nesta hora
no vento calmo
desta tarde de agosto

Sou um dos que morrem
e choram
de desgosto
nesta tarde
de um país distante


São Paulo 11/08/1982

A saída

Eu poderia voltar para minha cidade natal
Para tentar me achar, achar minhas raízes

Eu poderá me olhar, me analisar
Ou até me espiritualizar

Eu poderia me trancar num quarto de hotel
E procurar a saída das dimensões,
Dos sons, das frustrações

Eu poderia tentar me matar,
Mas a morte é mais difícil que a vida
Perdida nos laços da imaginação

Eu poderia procurar a minha liberdade,
As minhas saudades, pequenas fatias

Do chão de minha terra.


São Paulo, 05/10/1979

Ano-Novo

Resigno-me ao crepúsculo de dezembro:
Gordas nuvens desenham guerreiros no céu

Rosas escarlates murcham evidências
Me afligem muito estes dias de fim de ano

Estes festivos quarteirões inteiros iluminados
Rojões jogados, pessoas passeando, pequenas

Nas calçadas reformadas de silício e pedra
O mundo subindo em minha direção

É ano novo, não há vida nova ou assados
Nem centros de luz que se perceba

Nada que me festeje
Ou me divirta.