sábado, junho 29, 2019

ESBOÇO




É preciso falar da forma, do trilho, da pena última que nos coloca
Diante de tudo:  sim, eu me lembro.
Preciso da certeza do tempo.
O que é necessário, o que preciso para desenhar em mim os pintores florentinos de claras cores bucólicas e surreais
Preencho.
O que foi lido e declamado, o que foi destruído, o que virou prédio abandonado
Tijolos à vista como esq               ueletos em bairros escuros e mal-afamados.
Tento perpetuar minha sede. Minha atenção não é fluida.
O clareado da ideia é simples forma de colchão, caminho de trovoadas, peito inflamado
De paixão.
Sou um esboço. Mas não sei quem é o artista.

sexta-feira, junho 01, 2018

O TEMPO ESTÁ PASSANDO

Engraçado, me lembro do dia em que tirei a primeira foto. Minha mãe nem tinha a grana, precisou pedir emprestado para pagá-la.
Me lembro da Escola Estadual Álvaro Guião, do diretor Wilson Placco que, anos depois, já adulto, já morando em São Paulo, fui visitar em seus últimos dias.Ele morava perto do estádio, creio que na Rua Santa Terezinha.
Ele estava acamado, vários tubos, mais magrinho do que sempre foi. Aliás, o apelido dele na escola era "Pantera Cor de Rosa, de tão magrinho.
Muito pálido. Tive a honra de apertar sua mão, dias antes dele falecer. Homem íntegro, carreira brilhante na Educação de milhares de jovens de Andradina.
Me lembro dos meus professores:
. Dona Eukiko Akira Watanabe, em breve intervalo de dona Janete.
. Dona Widade Salomão, familia libanesa, mulher calma no ensinar, maravilhosamente culta.Como aprendi com ela!
. Dona Nelci, esposa do famoso Sargento Vitorino, lendário chefe do TG (Tiro de Guerra) de Andradina, local onde eu passava diariamente quando ia para Escola Estadual Álvaro Guião.
Quantas risadas dei, observando os jovens de 18 anos, servindo ao exército, parados, fardinha verde, pálidos de medo dele. Você se lembra dele Nivaldo Pereira?
Me lembro da sorveteria que ficava na Rua Bandeirantes, do Seu Valter Galli, onde às vezes íamos tomar sorvete.
Me lembro da mãe dele, uma velhinha que trabalhava como inspetora na escola.
Me lembro do Jacinto "Galo-Cego", durão, inspetor de alunos que não dava moleza para a molecada que aprontava.
Me lembro do cheiro das ruas de Andradina.
Dos pôr-de-sol, que morria para os lados do Mato Grosso.
Me lembro dos meus amigos, de minha amiga Marcia Ramos da SilvaMara Ramos, e de tantos outros.
Das matinèes do Cine Santo Antonio, dos filmes de bang-bang, Giuliano Gemma, que morreu, coitado, num acidente automobilistico em Roma há pouco tempo atrás. De suas duas filhas, que tenho o prazer de ter no facebook da Livraria Phylos. Elas sabem de toda a admiração que eu tinha pelo pai delas, já comentei.
Me lembro de minha rua Acre, terra vermelha, ventania, chuvas aterrorizantes, de cair o céu.

domingo, abril 01, 2018

O MARRUÊRO - Catulo da Paixão Cearense


Sá dona, eu sou marruêro! ...
Nascendo cumo tinguí,
fui ruim cumo piranha,
mais pió que sucuri.
Pixúna daquelas banda,
véve a gente a campiá! ...
Deus fez o hôme, sá dona,
prá vivê sêmpe a lutá.
Meu pai foi bixo timíve
e eu fui timíve tômbém!
O pinto já sai do ovo
cum a pinta que o galo tem.
Se meu pai foi marruêro,
havéra de eu tá na tóca,
a rapá no caitetú
a massa da mandioca?!
Bebedô de manduréba,
pissuindo carne e caroço,
eu nunca vi cabra macho
que fizesse sobrôço!
Nunca drumi uma noite
imbaixo de tejupá! ...
Nasci prá vivê na gróta,
prá vivê nos môcosá ...
prá drumi longe dos rancho,
purriba duns gravatá ...
vendo a lua pulas foia
d'um férmoso iriribá!
Nos gaio da umarizêra,
o cantá do sanhassú;
na bôca triste da noite,
o gimido da inhabú ...
as tuada da cabôca,
lavando n'água do rio,
e os canto, prú via dela,
nos samba ..nos disafio ...
nada disso, não, sá dona,
me dava satisfação
cumo o mugido bravio
dos valente barbatão!
Lá prá as banda onde eu vivia
já si falava do amô:
todas as boca dizia
que era farso e matadô!
Catulo da Paixão Cearense, nasceu em São Luís do Maranhão ( São Luís, 8 de outubro de 1863 — Rio de Janeiro, 10 de maio de 1946)
"Panorama da Poesia Brasileira - Fernando Góes, Editora Civilização Brasileira, 1960"

domingo, março 18, 2018

O POÇO



Poucos, bem poucos, me conhecem. Piedade no corpo, primeiros sons do dia. A luz da lua na superfície rasa da água, O diluído, o copo, a lousa ainda escrita. Enlaço da cintura, o poço sem fundo, O que é grave e mórbido, o tempo, O lembrado e esquecido, a cura.

Poucos, bem poucos, me conhecem. Nota em sol, em lá, em si, bemol. O cântico infectado pela voz timbrosa de uma imagem na tarde.

A PROFESSORA DE LÍNGUA PORTUGUESA

Numa de minhas visitas a Andradina, saindo de uma loja de roupas na Rua Alexandre Salomão, escutei alguém chamar:
- Mayumi!
Olhei para os lados, tentando achar a Mayumi. Será que era minha antiga professora de Lingua Portuguesa no Onze de Julho, na Vila Mineira?
Vi a poucos metros, uma japonesinha magrinha, cabelos brancos, com um chapeuzinho na cabeça. Ela respondeu ao chamado, beijou a mocinha que se aproximou dela e seguiu seu caminho. A reconheci imediatamente. Era minha antiga professora.
Mayumi sempre foi excelente professora. Indicava livros, indicava autores clássicos, nos mostrou mundos e obras fantásticas, fazia discussões em sala de aula, criava grupos de coral em várias vozes para declamar João Cabral de Melo Neto. Era dinâmica e inteligente.
Mas teve vários problemas administrativos. Foi acusada algumas vezes de “sedução de menores”. Diziam que ela, além de lecionar em sala de aula, também dava “aulas extras” para os alunos em estradas ermas, matagais, dentro do seu fusca bege, na beira de rios e lagos, e não eram exatamente aulas de língua portuguesa, ou talvez de outras línguas, que os jovenzinhos apreciavam muito, para alegria dos alunos e dos pais. Já as mães, pelo jeito, não simpatizavam com estas tais aulas e várias foram reclamar na Delegacia de Ensino de Andradina. Nunca nada foi provado. Os alunos sempre negavam estas tais "aulas" bucólicas e solitárias.
Mayumi respondeu a todas as acusações negando tais atos. E conseguiu se aposentar como professora. Olhando aquela velhinha - na época eu tinha 14 anos, ela devia ter uns 29, 30 anos -, me lembrei daquela época, eu rapazinho, pensando em filmes e livros, andando pelas ruas poeirentas de Andradina. Me lembro bem porque foi em 1977 que eu e minha família voltamos para Andradina e consegui, a muito custo, uma vaga noturna no Onze de Julho.
Vi a japonesinha andando à distância, cabelos curtos (ela usava compridos na época), seu chapeuzinho na cabeça, blusa florida e calça clara, subindo a Rua Alexandre Salomão sentido Rodoviária. Acho que ela sempre morou por ali.Será que ainda usava o seu famoso perfume de alfazema, comentado pelos de olfato mais apurado?
Muita gente se admira do meu português, que escrevo razoavelmente bem, e do meu gosto por livros, etc.
E eu sorrio.
Tive uma excelente professora.
(Obviamente, o nome da professora nunca foi Mayumi, certo?)

quarta-feira, agosto 23, 2017

PELA NOITE


À minha direita, o relâmpago e a última ceia.
O cavalo negro do último cavaleiro.
A rapidez do verso, a calmaria da árvore.
O dilúvio de lágrimas que se expõe na derradeira flor de lótus.
A iminente corrida de um homem só e vago
A noite pintada de breu e espera, de pausas e tardes adormecidas.
Não há mais janelas. Apenas
Um sopro de luz, escorrendo pelo ventre da tarde inquieta.

segunda-feira, março 14, 2016

A NÃO SER A NOITE E AS SEMENTES






Nada restou, a não ser a noite e as sementes
A casa negra e o alvorecer,
As palavras e as flores tristes.
Eu desconhecia ecos
Cujo som me envolvia na tarde
Ouvindo o radio, olhando o portão
As madressilvas no pequeno jardim
De minha casa.
Nada restou, nada. 
O país da morte ainda se desenha
Num crepúsculo arroxeado e vestido
De luto, nas plumas apressadas em
Um gesto, um tchau distraído 
Um caminhar respirando na luz
Quase linear
Do fim de dia.

quinta-feira, março 05, 2015

O POÇO


                    Foto by Mauro P. da Silva - Quinta da Baronesa, Bragança Paulista, SP

Poucos, bem poucos, me conhecem.
Piedade no corpo, primeiros sons do dia.
A luz da lua na superficie rasa da água,
O diluido, o copo, a lousa ainda escrita.
Enlaço da cintura, o poço sem fundo,
O que é grave e mórbido, o tempo
O lembrado e esquecido, a cura.
Poucos, bem poucos, me conhecem.
Nota em sol, em lá, em sí.
O cântico infectado pela voz timbrosa
Triste e vazio, mas cheio.
E só.

segunda-feira, fevereiro 16, 2015

SANTUÁRIO




Pai,
Escutai meu coração de homem.
Minha fortaleza se decompõe,
Meus flancos estão abatidos
A lembrança que trago do tempo
É um santuário de vozes,
De queixas e súplicas.

Pai,
No fio da espada passei meu coração
Perdas foram derrubadas, foi tapada a minha boca,
Á sombra da tristeza descansei meu corpo.
Escuta minha voz, que clamo neste deserto
Nesta cidade imensa de concreto e aço.
Senhor, salva-me, emenda-me, sutura minha dor
Tenho medo da tua mão, ó Pai.

quarta-feira, agosto 20, 2014

A LUTA QUE TRAVO COM DEUS

Ás vezes procuro Deus na estrada
E observo o lusco-fusco dos carros que vão e vêm
Numa interminável teia multicolorida,
Como pirilampos enlouquecidos pela noite.

Ás vezes procuro Deus numa criança,
Que brinca e esperneia, ri e chora,
Sem saber ao certo do que se trata a vida
As pessoas a sua volta, e seu mundo se resume
A coisas simples, pequenas, básicas,
Como o amor dos pais, o comer e o dormir.

Ás vezes procuro Deus nas pessoas que vejo,
Algumas sombrias, algumas desconcertadas
Buscando, elas mesmas, este Deus tão desejado,
Em igrejas e livros obscuros que não levam a lugar nenhum.

Mas Deus, percebo, está em mim e quase sempre se debate
Entre o Bem e o Mal, entre o Dia e a Noite
Luta entre o Estar e o Não-estar.
Descansa seu corpo entre pequenos detalhes da vida:
Um palito, uma nuvem, um movimento na rua,
Uma escada que sobe, uma ave que desce,
Uma revoada de andorinhas como as que eu via em minha terra
E nunca mais vi aqui na cidade grande.

Deus está em mim, mora em mim.
E me empresta seus olhos para que eu veja nas coisas que me cercam
Sua silhueta desenhada nesta coisa medonha e terrível
Deliciosa e amarga,
Que chamamos Vida.