domingo, maio 20, 2007

O barqueiro

Basta um só recanto para enxugar
o que me tem matado, o interior da carne,
bloqueio descontínuo e gasto
onde me escondo.
A ligação das coisas é como um recuo
corrida de sombras, espaços mal distribuidos
entre as mãos, barqueiro da morte,
estacionado entre os trilhos.
Toda noite ouço as antigas vozes
raparigas alegres girando sob a lua.
Brônzeos corpos desenhados na água
dormindo o sono, escorrendo as tranças,
ocultando de mim a exata figura.
Que o dia de hoje seja pleno
e não me escorra entre os dedos.
Que o dia seja pleno
e se prolongue além da indagações.

Assim mesmo, o grande fruto nos devora

Pessegueiros desenhados sob o sol do fim do dia.
Furta-cor, o gris da tarde sublinha pelo teu rosto.
Cai o tempo, como cai o corpo sobre outro corpo, lentamente.
E gravado o nome fica, como se o mármore do tempo
fosse um grande relógio, com horas marcadas e beijadas.
Assim mesmo, o grande fruto nos devora.
Sucos, beijos, espermas mal desenhados sobre a pélvis.
O dia explode. A noite situa-se entre o ser e o não-ser.
O devir. Exala por todos os sentidos do poeta a queda
num precipicio de sombras.
O tempo urge, berra como um bezerro no campo.
E nos insere, como palavras quase ditas,
quase escritas, quase doloridas
e intoleráveis.

MOÇAS LOIRAS

Na cama, desenhos matutinos me enchem os olhos.
Andorinhas em bando parecem voar pela janela.
Moças loiras sorriem debruçadas e sonolentas,
Jarros de plásticos, exemplos fúteis de roupagem.
O pé no tapete,
o corpo hirto.
O poema insinuado
no abajur.

quarta-feira, maio 16, 2007

Continuando a rodar

O crescente ronco do dia me avassala. Vem a seguir
um estalo profundo e cinzento, muros altos,
punhais brilhando na escuridão da cela.
E os cristais parecem fogo, gritos anasalados percorrendo milharais.
Alguém quebrando espigas com o peito, pela noite afora, comissionada.
Espéculos ferindo a luz selenita, o calcanhar rápido do fugitivo,
o último individuo a se apresentar diante do fogo.
O bom nome da vida não mais resiste, não mais se espalha.
Aquele que fui, estremece em palha, consiste em hábito
se apresenta de forma sutil e desdenhosa
cercado por figuras mal fixadas.
Um lampejo e mais nada em sua quietude.

sexta-feira, maio 11, 2007

Sobre o poema

Teria que citar o dia abundante,
as formas puras e precisas, a evocação
das lágrimas, o pulsar das esferas.
A paixão enroscada nas escadas do riso,
a tarde incerta no rosto do homem.
A flor da primavera coesa,
a queda leviana do joio colhido,
a mutilação do homem e suas formas irrisórias,
o ir sem saber para onde,
as estradas pintadas
através da vindima,
a colheita feita por mãos aflitas.

Cantaria a rua e suas praças de velhos,
casas carcomidas e varais
repletos de roupas,
escolas e crianças
correndo atrás de uma bola,
alguns pés de manjericão,
viagens de além-mar.
Falaria sobre música, sobre bicicletas e jogos,
mulheres indiferentes e colchões repletos
de púrpura insônia,
da chuva precipitando-se
sobre os homens de hoje, arrastados pelos de ontem
e nunca chegados aqui.

Falaria sobre esta angústia incessante, essa eterna busca
de morrer , a falácia do riso falso, da noite subjugada
pelos tiros de homens desesperados.
Falaria das esquinas de ferro e sangue,
de quem se faz de mudo por não ter o que falar,
das vidraças opacas.
Jogaria o poema dentro do liquidificador
e nele criaria metáforas de fome, líricas misérias,
porque o poema não mata a fome
dos que são últimos ou primeiros.

Criaria labaredas intensas nas veias
do poeta magro e de óculos, que escreve,
mas não entende, que escreve,
mas não vende.
O poema teria que citar os filamentos das palavras
encardidas, jogadas sobre os ombros dos pobres
de espírito, dos dias encobertos pelo riso escuro e louco.
Teria que citar as expressões fistuladas
sobre o balcão da vida e sobre ele morrer diariamente,
sem nada além do que rir.

Falaria do mar porque o mar
não nos pertence nem nos inunda,
o mar é vôo rasante e filho do espírito
e não vivemos para o mar,
vivemos para a terra, porque somos pó
e ao pó retornaremos,
vazios de mar.
Falaria do céu, desse céu que quase não vemos,
dessa cor rubro-negra
sentida em cores De Luxe sobre as plantas,
as casas despidas,
esse céu onde Elias foi, onde Gagárin foi e se riu,
tamanha a sua vacuidade.
Céu de nuvens carnavalescas
onde os homens olham e anseiam,
mas não conseguem alcançá-lo porque estão sós.