Neide era morena, alta, a pele do rosto um pouco maltratada por espinhas, mas tinha bons quadris, pernas longas. Os seios eram pequenos. Era nossa vizinha, filha do seu Nestor, funcionário da prefeitura. Ele bebia muito, às vezes agredia a mulher e quando ela conseguia escapar de sua ira sobrava para os filhos. Neide era a mais velha e a principal vitima do pai. Ele parecia ter um prazer especial em agredir a filha de treze anos. Mas um dia eu descobri a razão. Dona Estefania era amiga de minha mãe, costumava fugir para a nossa casa quando o marido ficava violento demais . Certo dia, chorando, ela confessou à minha mãe que sabia que o marido abusava da filha já há algum tempo. Notou pelos lençóis, pela calcinha suja da filha, pelo jeito constrangido e principalmente pelo medo que a garota tinha do pai e pelo jeito lascivo como ele a acariciava.Desde aquele dia percebi que o destino de Neide seria complicado. Ela era minha amiga, também gostava de ler e costumávamos dividir os velhos gibis que eu conseguia comprar com os trocados que ganhava vendendo sorvete ou engraxando alguns sapatos. Via seus olhos negros e tristes, seu riso tímido, o jeito engraçado que ela me falava sobre o futuro, de como ia estudar e ser enfermeira. Nas noites de calor todos nós nos reuníamos na esquina da rua Acre com a Santa Terezinha e brincávamos de namoro no escuro, cabra-cega, salva-lata. Às vezes eu sapecava-lhe um beijo rápido e ela ficava meio que assustada, me olhando de lado e me perguntava: “Por que fez isso”? e eu respondia: “Ora, porque eu quis, você tem um cheiro gostoso".Foi por esta época que uma vizinha nossa se suicidou, pulando na linha do trem e tendo o corpo despedaçado, triturado em vários pedaços que se espalharam desde o local onde ela pulou na frente do trem até a estação da cidade. O marido havia descoberto que ela o estava traindo com um rapazinho de 18 anos, morador lá para as bandas do campo de aviação e com medo das represálias – o marido já havia lhe dito que se isto um dia acontecesse, ele a mataria -, resolveu pular na frente do trem cargueiro das vinte horas.Nessa noite, a policia recolheu os pedaços dela e colocou num saco de pano. Lembro-me deste saco encostado displicentemente na mesa da sala, deixando uma marca vermelho-escura no chão de terra. Uma mão, a mão esquerda, da aliança, não havia sido encontrada. Depois, um morador do bairro descobrira que um cachorro estava degustando a mão da morta em uma mata próxima e a trouxera de volta. Essas imagens, a do saco manchado de sangue, do sangue escorrendo e fazendo um desenho escuro no chão da sala, ficaram em minha cabeça por muitos anos. Também o choro lamentoso dos filhos da morta, o rosto fechado do marido, dizendo “Não era preciso ela fazer isso”, e a expressão desoladora das amigas, vizinhas, algumas provavelmente com o mesmo medo de serem descobertas pelos seus maridos. Neide também esteve lá, quieta, pensativa, olhando fixamente o saco de carne. Após um tempo, acho que pelas 2 da manhã, as crianças foram retiradas do local e ela também quis ir embora. Caminhava na minha frente, de cabeça baixa. No que será que pensava minha amiga? Até hoje, passados 30 anos eu tento imaginar. Talvez pensasse na vida miserável que levava, com um pai estuprador e uma mãe que por medo era omissa e a havia abandonado à própria sorte. Talvez pensasse que a morte fosse preferível àquela situação terrível em que vivia. Ela era mais velha que eu uns 3 anos, mas já tinha jeito de mulher, as formas arredondando-se, as pernas já ficando roliças, o traseiro bem feito. Acho que foi logo depois deste fato que ela engravidou e praticamente foi colocada para fora de casa. Nunca soube se era do pai ou de outra pessoa. Chegou a ficar uns dias em minha casa, já que minha mãe tinha imensa pena dela e um ódio quase mortal pelo seu Nestor, mas depois de certo tempo, não me lembro exatamente quem ou como, arranjaram uma casa de família para ela trabalhar em Ilha Solteira e não a vi mais. Soube tempos depois que ela havia tido uma menina.Um dia, voltando de meus passeios pelos sítios alheios, roubando mangas, cana, goiaba, qualquer fruta que estivesse fácil e de vez em quando matando uns passarinhos com meu estilingue, escutei uma vizinha conversando com minha mãe e percebi o nome dela na conversa. A vizinha dizia que ela já não mais trabalhava em casa de família, pois a patroa descobrira que o marido estava de olho nela. Foi colocada para fora da casa. Não entendi direito o resto da conversa quando ela disse que Neide estava num bordel, “servindo os homens e fazendo de tudo”. Aquela frase ficou me perturbando e quando meu tio José, o mais safado da família, putanheiro e segundo meu avô, um perdido, chegou no final do dia, a primeira coisa que perguntei a ele foi o que era bordel e o que significava uma moça servir os homens fazendo de tudo. Meu tio, surpreso com minha pergunta, perguntou onde eu havia escutado aquilo. Contei o que tinha ouvido. Ele praguejou e disse: “Cacete, eu era quem queria pegar aquela potranquinha” e me empurrou para fora do quarto.