Uma das primeiras imagens que me lembro é de uma estradinha poeirenta que saía de nossa casa, subia uma pequena encosta e ia em direção à sede da fazenda. Sempre me recordo desta estrada cheia de sol, jamais com chuva, jamais enlameada. Nossa casa era de pau-á-pique, chão de terra e tinha um terreiro imenso na frente. Ali paravam os caminhões cheios de trabalhadores que meu avô contratava para a colheita do algodão. Eram homens sem eira nem beira, alguns encontrados sem rumo nas cidades vizinhas, mas que seduzidos pela oferta de trabalho vinham até a roça do meu avô.
Eles desciam do caminhão meio acabrunhados, e ficavam ali, esperando as ordens, qual a parte da roça seria trabalhada. Me recordo que, saindo de frente a nossa casa havia um algodoal imenso, um mar de brancura que se perdia na distância. Para mim, parecia não ter fim. Para os fundos da casa começava um varjão, palavra que definia a parte mais úmida da terra, em volta do rio, onde os cavalos do meu avô, levados pelos meus tios bebiam e eram lavados. Neste rio, certa vez, meu tio Nivaldo escorregou de uma cerca e prendeu a perna num arame, ficando pendurado por ela. O rasgo foi tamanho que chegava a uns quinze centímetros. E como ele não deixava tratar, com o tempo aquela ferida criou bichos, cheirava mal e se não fosse a insistência de minha avó, talvez ele teria perdido a perna. Acabou sendo tratado quase que à força em Valparaiso.
A sede da fazenda ficava longe, acho que uns cinco quilômetros, e tínhamos que atravessar uma região de terra bem vermelha (me lembro bem), até chegarmos à porteira da sede, que não era nada mais que uma casa grande, avarandada. Certa vez, ao tentarmos atravessar de volta para nossa casa, vindo da sede, minha mãe e eu levamos uma corrida de uma vaca recém parida. Minha mãe me segurava com uma das mãos e na outra levava um caldeirão cheio de laranjas. A vaca investiu e saímos correndo pelo pasto, eu sendo literalmente arrastado e as laranjas caindo atrás de nós. Só deu tempo de passarmos por baixo da cerca e a vaca freou, bufando, a poucos centímetros de nós. Essa imagem tenho até hoje: nós abaixados, próximos a cerca recém atravessada, e a vaca bufando, ciscando, querendo achar um jeito de pular a cerca, o que seria o nosso fim, certamente.
Minha família tinha vindo do estado de Alagoas na década de 50, tangidos pela seca e pelas péssimas condições de vida. Tinham vindo de caminhão por estradas esburacadas, lamacentas, e a viagem durou sete dias. Comeram frutas, rapadura, farinha, carne seca. Banho, nem pensar. Sofreram com o calor, a pouca água, a diarréia que imperava talvez devido a água estragada, mas chegaram em São Paulo. Ficaram na estação da Luz e em seguida foram colocados num trem que seguiu para a região de Andradina. Os fazendeiros contratavam os nordestinos para fazerem o trabalho de bestas, de colheita, limpeza e plantação, pagando salários miseráveis que eles aceitavam, agradecidos por terem um local para dormir e comida farta.
Meu avô, com o tempo, conseguiu ser meeiro, ou seja, um pedaço de terra para trabalhar e dividir meio a meio com o dono, o que conseguisse amealhar ali. O fazendeiro entrava com a terra e meu avô entrava com todo o resto: trabalho, sementes, colheita, venda.
Me lembro que apesar da casa humilde havia fartura de comida. Meus tios, quando queriam carne, pegavam uma espingarda e desciam até o riacho, matavam um pato e traziam para minha avó ou minha mãe preparar. Ovos havia à vontade. Comprava-se na cidade pouquíssimas coisas, como açúcar, roupa, calçado, remédio.
Minha mãe, assim como meus tios José e Antonio, cresceram labutando na roça. Minha mãe não estudou porque meu avô acreditava profundamente que uma moça de família não precisava saber ler e escrever. Se soubesse, podia escrever cartas para machos e certamente daí não sairia coisa boa. Meu tio José cedo descobriu seu pendor para a música e para o namoro, vivia escrevendo cartinhas apaixonadas para a professora e arrumou uma acordeon, de onde tirava algumas notas musicais. Logo que percebeu que a professorinha não se interessava por ele, largou a escola e concentrou-se na acordeon. Começou a participar de bailes na região, e descobriu que ser músico era altamente compensador na questão de namoro. Começou também a beber. Chegava em casa de madrugada, alegre, mas cheirando a cachaça, o que fazia meu avô dar-lhe boas surras. Não adiantou muito. Tornou-se rapidamente a ovelha negra da família.
Meu tio Antonio sempre foi um rapaz tranqüilo, calmo, metódico, um pouco ingênuo. Era um dos mais claros da família, tinha os olhos verdes e cabelos claros, como a minha mãe. Cuidava muito bem do estômago, era um pouco gordinho. Quando queria almoçar e não tinha carne, matava um pato, vigiava as galinhas para ver se botariam (enfiando um dedo no fiofó da coitada) e fugia de brigas. Quando completou quatorze anos exigiu e conseguiu que meu avô o mandasse para a cidade estudar. Mas meu avô deixou bem claro que não tinha como mantê-lo lá, pagando pensão ou hotel, então negociou com um conhecido que meu tio ficaria na cidade, hospedado na casa deste amigo e trabalharia por pão e moradia. Tinha que levantar às 4 da manhã, selar o cavalo, o carrinho e sair com o homem para entregar leite em casas da cidade. Voltava, almoçava e ia para a escola. Depois, à tardinha, tinha que trabalhar no sitio, cuidando de vacas, cavalos e na roça. Era uma vida dura. Assim mesmo, conseguiu ler e escrever razoavelmente bem.
Minha tia Cicera, a mais bela e protegida da família, foi enviada para Mirandópolis para aprender a ler e estudar corte e costura. Desde muito jovem, era faceira, namoradeira, passava horas penteando-se. Só não usava maquiagem porque naquela época, inicio da década de 60, numa fazenda do interior do estado de São Paulo, essa palavra sequer existia. Essa minha tia desde muito cedo mostrou-se muito sensual e meu avô, homem tremendamente rígido nos seus conceitos, deu-lhe inúmeras surras. Mas não adiantou muito, porque ela não mudou, obviamente, e com o passar do tempo acabou fazendo algumas coisas que o pobre do meu avô nem desconfiava.
Tenho algumas imagens meio nebulosas desta época. Eu devia ter uns 3 ou 4 anos. As coisas não andavam bem e aproximadamente em 1964, meu avô jogou a toalha e decidiu ir para a cidade. Escolheu Andradina, que das cidades mais próximas, era a mais promissora.
Nesta época, morávamos próximo às Três Alianças (Primeira, Segunda e Terceira Aliança), entre Valparaíso e Pereira Barreto. Há alguns anos atrás fui conhecer estas Alianças: povoados minúsculos, mas me ficou na cabeça uma igrejinha branca em Primeira Aliança, muito fotogênica, talvez um pouquinho melancólica.
Em uma das vezes que meu avô foi à cidade, creio que em Valparaiso, comprar alguns medicamentos e utensílios, conheceu um rapaz que procurava emprego. Ele estranhou a principio porque o rapaz era de boa aparência, não tinha a aparência maltratada dos trabalhadores braçais, sabia ler e escrever e estranhamente não tinha calos nas mãos. Decididamente era um tipo estranho...E tinha mania de leitura. Quando fecharam a contratação, meu avô pediu para que ele subisse no carrinho puxado a cavalo e o rapaz assim o fez, puxando para cima apenas uma malinha com poucas roupas e.... muitos livros. Isso deixou meu avô muito surpreso. Simpatizou com ele, falava bem, tinha um jeito tranqüilo e parecia faminto. Mal sabia meu avô que estava contratando o homem que lhe roubaria a filha e a abandonaria depois, grávida. Minha mãe Maria, a mais velha das filhas.
Aquele rapaz era o meu pai.
2. Chegada em Andradina
Chegamos em Andradina mais ou menos em 1966. Digo mais ou menos porque não me recordo da data correta. Meu avô, não sei como, acabou comprando um terreno na Rua Acre. Naquela época, a prefeitura facilitava a compra em dezenas de mensalidades e ele aproveitou a ocasião comprando um belo terreno de 20x25 metros, o que chamavam de “meia-data”. Como não tínhamos dinheiro e precisávamos ter um teto, ele acabou fazendo uma casinha de pau-a-pique, como tínhamos na fazenda e lá colocamos os poucos e velhos móveis.
O bairro tinha pouquíssimas casas, bem diferente de hoje. A maioria dos terrenos estavam desocupados, as ruas eram de terra, poucos vizinhos. Ficamos por ali. Meu avô conseguiu um emprego na Usina de Ilha Solteira que estava iniciando. Virou “barrageiro”. Levantava às 5 da manhã e esperava o caminhão da Camargo Correia. Não precisava levar marmita pois existia, na obra, o tal “bandeijão”. Meu avô era um homem duro, mas várias vezes me lembro dele olhando as mãos calejadas, maltratadas, apesar do uso de luvas na obra. Dá para imaginar como o trabalho era pesado.
Apareceu a oportunidade de se fazer uma casa de madeira. As madeiras que eram usadas na obra da Usina de Ilha Solteira eram depois jogadas em um local e as pessoas podiam pegar o que pudessem. Meu avô alugou um caminhãozinho e lá foram todos da família, minha mãe, tios e tias buscar a tal madeira. Até minha avó foi. Trouxeram o caminhão lotado de tábuas e assim, ele, junto com uns amigos e meus tios, construíram uma nova casa na parte da frente do terreno. Finalmente, teríamos uma casa bem construída, bem pintada, espaçosa. E com um jardim na frente, jardim onde cacei muitas borboletas. Malvadamente, eu as capturava e amarrava uma linha na bundinha das pobrezinhas e as fazia voar. Por quê as crianças são tão maldosas?