quinta-feira, junho 12, 2008

Arte e Isadora Duncan








Em São Francisco, em 1878, Isadora O’Gorman Duncan, senhora muito ativa e que tocava piano com muito gosto, resolveu divorciar-se do marido, o distinto senhor Duncan, cuja conduta foi, ao que parece, muito pouco delicada. A questão afetou-lhe tanto os nervos, que disse aos filhos que o estômago não suportava senão um pouco de champanha e ostras. E no meio do ressentimento, das acusações e dos desgostos domésticos – num mundo de pensões iluminadas e gás e mantidas por belezas meridionais arruinadas, magnatas ferroviários e porta giratórias, de bebedores de uísque que mascavam cravo para que lhes notassem o mau hálito e escarradeiras de lata, carros de quatro rodas e cinturas justas, de desocupados e vestidos compridos, de muitos babados e cauda (num mundo no qual salas de conferências e de concertos davam direito a chamar-se senhoras cultas e constituíam o centro da vida daquele que tivesse aspirações) – teve uma filha a que deu o próprio nome:Isadora.

O rompimento com o senhor Duncan e a descoberta de sua duplicidade, converteram a senhora Duncan em feminista fanática, em atéia e apaixonada entusiasta das conferências e artigos de Bob Ingersoll. Onde estava escrito Deus, lia Natureza; onde estava escrito Dever, beleza; e somente o homem é vil.
A Senhora Duncan lutou muito para criar seus filhos no amor à beleza e no ódio aos coletes, às convenções e às leis ditadas pelos homens. Deu lições de piano, fez bordados e teceu chalés e luvas. Os Duncans estavam sempre cheios de dívidas. Deviam sempre o aluguel da casa.

As primeiras lembranças de Isadora eram as de adulações aos vendeiros, açougueiros e proprietários de casas e a venda de gulodices que sua mãe fazia, de porta em porta, e ajudando a tirar as maletas por uma porta dos fundos, quando tinham de passar calote nas pensões, uma atrás das outras, todas pobres e com muitas pretensões.

Os pequenos Duncans e a mãe formavam um clã: os Duncans contra o mundo grosserio e sórdido. Não eram católicos nem prostestantes, nem quakers, nem batistas; eram artistas.

Ainda pequenos, os meninos chamavam a atenção da vizinhança, dando representações teatrais num celeiro. Elizabeth, a mais velha, dava lições de danças de salão. Como eram do Oeste, o mundo lhes parecia uma quimera. Não se envergonhavam de mostrar-se em público. Isadora tinha olhos verdes, cabelos avermelhados e um pescoço e uns braços magníficos. Como não podia pagar as lições de dança, inventou sua própria dança.

Mudaram-se para Chicago. Isadora dançou na festa organizada pelo Washington Post, no jardim do templo maçônico e conseguiu um emprego de cincoenta dólares por semana. Dançava nos clubes. Foi ver Augustin Daly e disse-lhe que havia descoberto a Dança. Em Nova Iorque, fez o papel de fada, numa representação de Sonho de uma Noite de Verão, com Ada Rehan.

Os Duncans seguiram para Nova Iorque. Alugaram uma grande sala em Carnegie Hall, puseram colchões nos cantos, penduraram cortinas nas paredes e fundaram o primeiro estúdio de Greenwich Village. Estavam sempre com medo de que a policia os apanhassem. Passavam a vida bajulando os comerciantes que lhes apresentavam as contas, fazendo a dona esperar pelo aluguel e arrancando dinheiro dos ricos. Isadora organizou recitais em Ethelbert Nevin. Interpretava, dançando, os poemas de Omã Khayyam, para as senhoras da sociedade de Newport.

Quando o Hotel Windsor se incendiou, perderam todas as cousas, inclusive as contas que deviam, e embarcaram para Londres num navio de transporte de gado, fugindo do materialismo da América.

No Museu Britânico, descobriram os gregos. A Dança era grega.
Sob as fumarentas chaminés de Londres, nas praças cobertas de fuligem, dançaram com túnicas de musseline, copiaram atitudes das ânforas gregas, percorreram galerias de arte, assistiram a conferências, concertos e representações, encheram-se, num inverno, de cincoenta anos de cultura vitoriana.

Sempre que eram postos para fora, por não pagar aluguel, Isadora os levava para os melhores hotéis, alugava uma série de salas e ordenava aos criados que se apressassem em servir lagosta, champanha e frutas que não fossem da estação. Nada era bom demais para os artistas, os Duncans, os gregos. E a frescura de Isadora encantava à Londres do século dezenove. Dançavam em festas de aristocráticas mansões de Kesington e Mayfair. Os ingleses, do Príncipe Eduardo para baixo, sentiam-se escravos de sua beleza pré-rafaelita, de sua inocência cheia de vida, de seu sotaque californiano.

Depois de Londres foi Paris da Exposição Universal de 1900. Isadora dançou com Louie Fuller. Era ainda uma virgem muito tímida, para compreender as insinuações de um Rodin, o grande mestre, que então se achava inteiramente desconcertado com as extravagâncias do bando de moças aloucadas e homossexuais de Louie Fuller. Os Duncans eram vegetarianos, desconfiavam da vulgaridade, dos homens e do materialismo. Raymond fez sandálias para todos. Isadora, sua mãe e seu irmão Raymond, correram a Europa em sandálias, com véus à cabeça e vivendo a vida grega da natureza numa sinfonia de contas a pagar.

O primeiro recital de Isadora teve lugar num teatro de Budapeste. Depois disto, tornou-se a diva e teve uma aventura com um ator. Em Munique, os estudantes desatrelaram os cavalos do seu carro. Tudo eram flores, aplausos e champanha. Fez furor em Berlim. Com o dinheiro que ganhou na excursão artística pela Alemanha, levou todos os Duncans à Grécia.
Chegaram num bote de pesca a Itaca. No Partenon, posaram para os fotógrafos. Dançaram no Teatro de Dionisios. Ensinaram um bando de meninos esfarrapados a cantar o antigo coro das Suplicantes. Construíram um templo para morar, numa colina que dominava as ruínas da velha Atenas. Mas na colina não havia água e antes que o templo estivesse concluído o dinheiro acabou.

Tiveram que hospedar-se no Hotel d’Angleterre, onde chegaram a dever uma boa soma. Quando o crédito acabou, levaram o coro para Berlim e representaram os Suplicantes em grego antigo. Ao ver Isadora envolta em seu peplo, caminhando pelo Tiergarten à frente dos meninos todos vestindo túnicas gregas, o cavalo da imperatriz assustou-se e atirou Sua Majestade ao chão.

Isadora ficou na moda. Chegou a São Petersburgo a tempo de ver o funeral noturno dos revolucionários mortos a tiro em frente ao Palácio de Inverno, em 1905. Teve muita pena. Ela era norte-americana como Walt Whitman. Os governos que cometem assassinatos não eram de sua classe. Sua gente eram os manifestantes. Os artistas nunca estavam do lado das metralhadoras. Era uma norte-americana de túnica grega estava com o povo.
Em São Petersburgo, que ainda estava enfeitada pelo balé século dezoito da corte do Rei Sol, suas danas foram consideradas perigosas pelas autoridades.

Na Alemanha, fundou uma escola com auxílio de sua irmã Elizabeth, que teve a seu cargo toda a organização; e deu à luz um filho de Gordon Craig.
Fez na América a entrada triunfal que sempre havia planejado e deixou os filisteus consternados com uma excursão artística. Seus companheiros eram detidos pela polícia, por vestirem túnicas gregas. Na democrática América não havia liberdade para a Arte.

O regresso a Paris foi uma apoteose: Arte significava Isadora. No funeral do Príncipe de Polignac conheceu o milionário (rei da máquina de costura) que seria o futuro provedor e financiador da sua escola. Foi com ele no seu iate (tudo o que Isadora fazia era Arte) dançar no Templo de Paeston, só para ele. Mas chovia e os músicos ficaram molhados até os ossos e todos preferiram embebedar-se.

A vida do milionário era Arte. Arte era tudo o que Isadora fazia. De volta, pela segunda vez, ao seu país, escandalizou, com sua dança, as velhas senhoras dos clubes e as solteironas aficionadas das artes. Também já mostrava no ventre o filho do milionário. E deu para beber e avançar até o palco, discutindo com os artistas.

Isadora estava no auge da glória e do escândalo, do poder e da riqueza. A escola progredia, o milionário ia construir um teatro em Paris, os Duncans eram sacerdotes de um culto (Arte era o que Isadora fazia).
O automóvel que, em Paris, levava seus filhos, parou numa das pontes do Sena. Esquecendo-se de que o carro estava com o cambio ligado, o chofer deu a partida. O motor arrancou e o automóvel caiu no rio.
Os meninos e a ama afogaram-se.

O resto da vida, Isadora viveu num desespero, entre alvoroços de escândalos, caras irônicas de jornalistas, ameaças de procuradores, demandas de gerentes de hotéis que apresentavam contas atrasadas. Isadora bebia demais, não podia deixar os jovens tranqüilos, usava o cabelo com vários tons de vermelho, nunca se preocupava em pintar-se como devia. Descuidava dos vestidos e jamais soube em que gastava dinheiro. Mas a impressão de saúde enchia a sala, quando a figura de braços maravilhosos avançava, lentamente, do fundo do cenário. Não sabia o que era medo; era uma grande bailarina.

Em São Francisco, sua cidade natal, os políticos não permitiram que ela dançasse no Teatro Grego, que haviam construído por sua influência. Onde ia, ofendia aos filisteus. Quando a guerra estalou, dançou a Marselhesa. Isso, no entanto, pareceu irreverente e sentiram-se ofendidos por não haver renegado a Wagner, nem ter mostrado respeitáveis instintos de matança.

Em sua excursão pela América do Sul, ligou-se com homens, em todas as partes: um pintor espanhol, alguns lutadores de boxe, um foguista de navio, um poeta brasileiro - deve ser João do Rio (Paulo Barreto), ao menos pelo que se pode deduzir das referências que ele faz a Isadora, em sua autobiografia. Procovou escândalos nos salões de tango. Chamou os argentinos de negros do palco. Embebedou-se de triunfo, em Montevidéu e no Brasil. Mas, enquanto tinha dinheiro, não podia evitar e gastava a rodo com dançarinos de tango, donativos, ceias depois do espetáculo e toda uma seqüência de loucuras. Tudo por sua conta. Os empresários aborreciam-na. Não sabia o que era, não se envergonhava com as murmurações, nem com as manchetes dos vespertinos.

Quando outubro levantou o pano do Velho Mundo, lembrou-se de São Petersburgo, dos esquifes deslisando pelas ruas silenciosas, dos rostos pálidos e dos punhos cerrados daquela noite e dançou a Marcha Eslava, pondo um lenço vermelho diante do nariz das velhas senhoras de Boston, no Symphony Hall.

Mas quando foi à Rússia, com a esperança de encontrar uma nova escola de trabalho, uma vida livre – viu que tudo ali era grande demais, difícil demais.

Quando já lhe era impossível obter mais dinheiro para a Arte, para as pessoas que comiam e bebiam nos seus aposentos de hotéis, para alugar Rolls-Royces e para a manutenção de seus discípulos e alunos – Isadora foi para a Riviera escrever suas memórias, a fim de arrancar um pouco de dinheiro do público norte-americano que, depois da guerra, havia despertado para os gregos, o escândalo e a Arte, e ainda tinha dólares para gastar.

Alugou um estúdio em Nice, mas nunca pode pagar o aluguel. Tinha brigado com o milionário. Suas jóias, sua famosa esmeralda, seu manto de arminho, seus objetos de arte, foram parar em casas de penhor ou em mãos de usurários. Tudo o que lhe restava eram os velhos cenários azuis que tinham visto seus grandes triunfos, uma carteira de couro vermelho e um velho abrigo de pele, descosturado nas costas. Não podia deixar de beber ou de lançar-se nos braços do primeiro que lhe aparecesse. Quando dispunha de dinheiro, organizava uma festa. Tentou afogar-se e um oficial da marinha inglesa tirou-a do mediterrâneo batido de luar.

Um dia, encontrou num pequeno restaurante de um clube de golfe, Juan, um jovem italiano, que tinha uma garagem e dirigia uma pequena Bugatti de corrida. Dizendo-lhe que talvez se decidisse a comprar o automóvel, pediu-lhe que fosse a seu estúdio, para que a levasse a dar um passeio. Seus amigos não queriam que fosse, diziam que o italiano era um simples mecânico, mas Isadora insistiu. Tinha bebido uns copos (no mundo só lhe interessavam a bebida e os jovens simpáticos...), ligou-se ao italiano, lançou para trás a echarpe de longas franjas para envolver o pescoço, com seu largo gesto habitual, virou a acabeça e disse com o sotaque californiano que jamais pode esquecer:

“Adieu, mês amis, je vais à la glorie «
O mecânico deu a partida e o carro arrancou. A pesada echarpe, que pendia para fora do carro, enroscou-se numa roda, puxou violentamente a cabeça de Isadora para o lado..O automóvel deteve-se instantaneamente. Tinha o nariz arrebentado, o pescoço pendendo...Estava morta.

(Extraído de "Dinheiro Graúdo" – John dos Passos – edição 1938)


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