domingo, fevereiro 10, 2008

Alianças

1. Primeira Aliança


Na descida pode-se ver águas descobertas
Quase que pintadas no seco ar de setembro
Reses pastando ao longo do canal de cimento
Festa onde o sol dança e pinta de vermelho
Nossos ombros frágeis.
Por toda parte os sinais de Deus se destacam:
O barro castanho do rio, a lua se pronunciando
Formas de gente se movimentando ao longe
Distantes gritos de “Ôooo boi” que resiste e luta
Contra a mão do homem que o domina.
No entanto, se Deus é espírito e absorve
Tudo que a mão humana desenha e produz
Penso que por trás de tudo isso, homem
Rês, rio, estrada, plantas, carros zunindo
Tudo se completa, dentro de si mesmo
Despertos e glorificados, imersos, tudo
No corpo sagrado que nos protege e anima.


2. Segunda Aliança


A igrejinha branca como que marca
O lugar modesto onde sei que nasci
Há distantes quarenta e poucos anos.
Noto senhores sentados em cadeiras
Jogando cartas, outros dominó
Mulheres com os filhos escanchados
Na cintura, algumas já prenhes, de novo.
O pedaço de pergaminho que hoje compõe
Minha vida urbana, construída milimetricamente
Em apartamentos, carros, escritório climatizado
Transforma em precário as quadras que respiram
Que me dizem: daqui saístes, e não negues.
Olho adiante: rasgados espaços falam
Em travessia, em peso contido dentro do peito
E ponho-me a andar, absorto pelo sol do meio-dia.


3. Terceira Aliança


Vi batelões com lemes desfigurados
Noites acuradas por cantos e violões
Vi versos simples, tesos e insólitos
Endereços de pessoas forjadas
Em trabalho bruto, mas honesto
E farto.
Vi moças lindas com vestidos simples
Extraordinárias faces, sorrisos largos
Falando coisas sérias e hilárias,
Ramos de feijão, feira de domingo
A cachaça boa do Zé da Esquina.
Vi cabelos brancos desenhados
Como num espelho, sem receio
Sem pintura, o relógio do tempo
Lembrando que o tempo acaba.
Vi decência.

2 comentários:

Anônimo disse...

Caríssimo Mauro, outro dia eu passei por aqui, li as Alianças, gostei. Hoje, passei de novo por aqui, sempre acho que esses caminhos são os mesmos dos meus, li mais uma vez as alianças e gostei muito mais, belíssimas trilhas de Andradina? Caro amigo-poeta, cada dia aprendo mais ler o mundo na sua semiótica bucólica dos sertões. Parabéns!

abraço, simao

ÁRVORES DO SIMAO disse...

Caro amigo Mauro, obrigado pela leitura do "Cavalinho-de-judeu". Uma coisa eu sei, só o artista modifica sem alterar o original, pois, se não fosse assim, não haveria artes nem artistas. Eu sempre insistia com meus alunos, sem ser artista: "a leitura é uma questão de grau" e cada leitor expressa-se a sua competência.

gde. abraço, simao