quarta-feira, maio 25, 2011

Fotografia de um lugar


Esta noite, para além das folhas projetadas
Para além das mãos que surgem em minha memória,
Para o temor de uma voz alta escondida e ligeira
Esta noite, jovem em minhas lembranças,
Agarrando uma corda, correndo atrás de uma carreta,
Afagando minha dor imperceptível em gritos.
Esta noite, deuses e sótãos, olhos e qualquer gesto
A mesa da sala abarrotada de libélulas e de céus,
Caminhantes numa estrada longe, longe,que nunca mais vi
Um silêncio de tantos anos, uma figura na rua;
Esta noite, aqui, neste bairro, nesta antiga cidade
São Paulo não mais cinza, mas que é a minha casa,
Onde envelheço e sofro como data numa folhinha antiga.
Esta noite imensa, imensa, que não me cabe,
Mas que escuto, chegando, devagarinho, por entre passos
Prédios e casas, pessoas e carros, e isso soa rude
Como fotografia de um lugar onde nunca estive,
Desenho atormentado de enormes conjecturas
Palavras hesitantes  e sem fôlego mas palavras,
Tamanho é o seu desenho em minha alma
Tamanha é esta noite em sua essência e fim
Pálida, caminho calçado e aceso entre os olhos
O colorido úmido do mais profundo de mim.

quinta-feira, maio 19, 2011

Marguerite Duras - Memórias de Adriano



     Enjoado com tanta literatura ruim, tipo "Os Crepúsculos", "Os Segredos" e outros que tais, resolvi inserir aqui alguns textos, pérolas da boa escrita, produzidos por imortais da literatura. Aqui segue uma amostra do que considero um excelente texto.

     "Ontem, na Vila, pensei nas milhares de vidas silenciosas, furtivas como as dos animais, irrefletidas como as das plantas, boêmios do tempo de Piranesi, saqueadores de ruínas, mendigos, pastores, camponeses alojados bem ou mal num canto dos escombros, que se sucederam aqui, entre Adriano e nós. Na orla de uma plantação de oliveiras, num antigo corredor meio desobstruido, G ... e eu nos encontramos diante do leito de caniços de um pastor, do cabide improvisado para seu capote, fixado entre dois blocos de cimento romano, das cinzas de sua fogueira mal apagada. Sensação de intimidade humilde quase semelhante àquela que se experimenta no Louvre, depois de fechar, à hora em que os leitos de campanha dos guardas surgem entre as estátuas."

  In "Memórias de Adriano" - Marguerite Yourcenar, Editora Record, página 313.
  À venda em http://www.livrariaphylos.com.br/

sexta-feira, maio 06, 2011

A roseira e suas hastes


A roseira e suas hastes criam água e luz, esponjas simples
Imitando medusas e criando filtros entre as sombras e os ninhos.
Um broto adquire vida e sobe, aquecendo raízes, fecundando dias
Situando-se no fundo da fenda ao longo do ano.
A seta colorida do talo desenha amores e
cômodas cores.Todos morrem.
O constante é ser vivo e ser só,
Todo o tempo
E mais nada além de imagens trêmulas.

terça-feira, maio 03, 2011

Meu avô usava chapéu Panamá

  

Meu avô usava chapéu Panamá
Terno de linho, bíblia na mão,
Tradução Ferreira de Almeida.
Bem diferente do servente
De pedreiro, sujo e manchado
De lama, que era na semana.

Ás vezes subia ao telheiro
Ou ficava no alpendre novo
Cheirando a tinta e fósforo
Trilha de musica e de radio
Que ás vezes escutava, só
Vendo a noite descendo.

A luz crespuscular expressava
Uma fina expressão de morte
O dia findando como uma chama
Rígida, pretensiosa, possível
Caindo no bairro e nas igrejas
Onde os crentes davam glorias.

Além da linha, o trem bruto
Rígido como um alquimista
Passando pela janela viva
Levando em si as vozes
Misturadas das gentes
E o sofrimento humano.

Me lembro do meu avô, Eleno
Olhando ao longo da cerca
Seu mandiocal e suas galinhas
Tentando adivinhar pelo trem
E seu apito longínquo
Qual o horário do dia.

E as estreitas filas do mundo
Eram desenhadas pelas linhas
Noroeste, Sorocabana,
Silenciosas linhas, absortas
Desenhando no chão a trilha
de Deus, talvez, ou dos homens.