terça-feira, janeiro 30, 2007

Sinais de fumo


Despreparado para o tempo, secretamente abatido
por galerias de retratos passados
Ainda espero algo que me eternize, em meio a balaústres pintados,
entre verdes de mar.

Aguardo sinais de fumo,
ônibus intermunicipais trazendo donzelas,
campos onde todos os dias soldados morrem.
Houve tempos em que não havia ainda cicatrizes no rosto.
À espera apenas o cineminha aos domingos à tarde,
o velhinho careca que proibia os meninos
quando o filme não era livre.
Ruazinhas secas, vermelhas, que ocupavam
o interior do homem que um dia se lembraria, aflito.

Trago flores e festas, estes sinais que agora desapontam.
Na minha loucura, no meu anseio triste de não me perder,
vislumbro postes onde um dia grudei um chiclete sem gosto
sobre o nome da garota que amava:
Sardenta e de olhos claros.
Tinha na mesa meu coração,
como seu favorito das estórias de gibis
(Tarzan, Zorro, Homem-Aranha, Fantasma enluarado),
herói sem rosto, herói anônimo de Santa Cecília,
o tímido que sabia escrever versos.

Isolado, escrevo em folhas brancas
desapontados textos onde manifesto meu espanto.
Venço pela força, venço pelo vento,
venço quem sabe, pela imensa tarde de janeiro que me cerca.
Sons de música. Sons de gente falando mais alto do que devem.
Sons de noivas, a prometida que nunca será amada.
Isolado, escrevo e me derramo, abafo promessas,
enleio trovas antes escondidas e acovardadas.
Mas o que é meu, não desfaço.
O que é meu, respeito,
e a despeito de tudo reúno forças
e vivo entre impérios.

sábado, janeiro 27, 2007

O espirito de Deus paira sobre as águas

(Próximo a Conceição do Jacareí - Angra dos Reis - tive essa visão de luz, que caia sobre o mar. Parecia uma visão da presença de Deus)

O espirito de Deus paira sobre as águas. Reflete entre peixes, algas, azuis profundos e cores de tangerina. A mão de Deus desenha as silhuetas sobre o mar de fundo, ilhas ao longe, pescadores jogando redes, pescando peixes tal qual o apóstolo queria pescar homens.
O espirito define a tarde, define o traço sutil ao longe, planta sob o céu as imagens que Deus pensou: estradas, mares, carros, duas crianças caminhando de mãos dadas, um velhinho sobre o cavalo, um vaqueiro tangendo as vacas.

Desenhos em meus olhos, câmera frágil que não consegue definir as inúmeras cores que Deus pinta.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

A caminho de Angra dos Reis

Pequenas peças formam-se enquanto dirijo. Parece chuva. A construção é lenta, o passo é lento, duas ou três chaves não bastam para abrir esta porta. O segredo é o segredo do tempo. Arrebol de tardes, campos desenhados nas mãos de alguém que caminha. A câmera está em lenta descida, fiscalizando os poucos pássaros que ousam voar na chuva sazonal. Campos, que ainda não existem, são formulados dentro de cada vizinho que acende a rua. Campos, ainda que não floridos, ainda que não desenhados de fato e de direito, apresentam-se despidos nas esquinas, ponto de órbita de um astro qualquer desfigurado.

As cansadas feiras já não expõem cistos. Trabalho de marinheiro, tiro água de um navio soçobrado. Trabalho de mercador, aquilo que se compra e se vende nas contidas qualidades, necessárias que são ao nosso bom acabamento. Confusos objetos quebram-se. Inflamada, a cidade simplesmente mergulha dentro de si mesma. Misturado a ela, escarpas do que sinto me dão o sustento e resisto. Pesco pérolas, mas submerjo, planta-pai, meridiano, pano só desenhado mesmo não havendo chuva. Ainda não fecundado nos campos do senhor.

Anotações de um caipira .4

Quando minha mãe fugiu com o namorado, meu avô ficou completamente fora de si. Era um homem realmente durão, alagoano, era filho de índios legítimos, nascido e criado numa região difícil chamada Poço das Trincheiras, próximo a Palmeira dos Índios. Mais que depressa ele arrebanhou alguns homens e colocou-se no encalço dos fujões, mas sem sucesso. Ofereceu recompensa a quem desse alguma informação, também se sucesso. O motorista do ônibus foi quem mais detalhou, falou de um casalzinho que havia adentrado o ônibus, mas haviam descido em Andradina e a partir daí, só Deus sabia qual o destino tomado. Chegou a ir a um curandeiro de nome Leobino, homem famoso por sua arte mística, por curar doença de gente e ferida de boi, que pediu uma foto do casal. Como só existia foto de minha mãe, a ele foi entregue. Depois conseguiram achar uma foto do tal Roldão, o ladrão que havia roubado a moça.

Leobino não conseguiu localizar o casal mas anunciou que a moça voltaria para casa grávida. O homem não voltaria jamais. E o interessante é que realmente minha mãe acabou voltando para casa, humilhada, grávida do filho de um empregado. O dinheiro deixado por meu pai havia acabado, os patrões, apesar de serem ótimas pessoas, pediram a casa depois de 3 meses e ela, como não tinha para onde ir, resolveu voltar para casa, cumprindo assim a profecia do tal feiticeiro. Chegou à casa do pai, grávida, mal vestida, e com uma malinha na mão. Meu avô não quis recebê-la a principio. Foi para os fundos da casa. Só alguns dias depois, após um mutismo que deixava claro sua revolta, acabou aceitando a filha. E assim, minha mãe voltou à sua vidinha de trabalho no campo.

Quando sentiu as dores do parto, no dia 23 de dezembro de 1962, chamaram a parteira, mas não nasci naquele dia. Passou-se o dia 24, o natal e finalmente, dia 26 de dezembro de 1962 nasci, às onze e trinta da noite. Minha mãe sofreu bastante, não apenas no parto, mas sofreria durante anos por ter tido um filho de um empregado, mulato e por voltar para casa sem marido. Lembro-me perfeitamente de ter visto minha mãe chorando por várias vezes, quando estas coisas lhe eram jogadas na cara. E assim vim ao mundo.

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Anotações de um caipira .3

Minha mãe trabalhava nos algodoais, junto com meu tio José. Logo, o novo contratado do meu avô começou a lhe chamar a atenção e começaram a namorar. Meu avô ficou extremamente irritado quando soube e fez o possível para que o rapaz percebesse que afinal, ele era o empregado, e a moça, apesar de trabalhar como uma besta na roça, era a filha do patrão e que ele devia manter distância. Além disso, o rapaz era um pouco escuro para o gosto do meu avô, quase um mulato, e minha mãe era loira, branca, olhos verdes....Enfim, nada de namoro. O rapaz, José Roldão de Araújo, sentiu-se discriminado e passaram a namorar escondido. Não demorou muito para que ele convidasse a moça a fugir com ele. Minha mãe contou anos depois detalhes desta peripécia. Combinaram a data e a hora da madrugada em que ele esperaria no começo da estrada que levava à Pereira Barreto. Minha mãe colocou algumas roupas numa mala velha e pulou a janela. Andaram seis quilômetros em pleno mato, numa trilha, até a estradinha onde passava um ônibus de manhãzinha. Pegaram esse ônibus e foram parar numa cidadezinha chamada Lucélia, próxima a Adamantina. Ali viveram vários meses juntos, ele trabalhando numa padaria como confeiteiro e minha mãe cuidando da casa. O patrão havia dado uma casinha para o casal morar e por isso não pagavam aluguel.

Meu pai era um homem talentoso. Minha mãe conta que ele era viciado em livros. E incrivelmente também sou, apesar de nunca tê-lo conhecido. Ele pegava vários livros, escolhia um lugar tranqüilo e ficava ali, sozinho, lendo. Era nascido em Vitória, capital do Espírito Santo e tinha vindo parar na região de Pereira Barreto / Valparaiso porque havia matado um homem em sua terra natal. Ou seja, era um fugitivo da polícia, procurado em seu estado. Não era homem de roça por isso suas mãos finas. Falava pouco do seu passado e de sua família. Era calado por natureza. Gostava de música, estava sempre com o rádio ligado ou assobiando uma canção. Depois de seis meses morando juntos minha mãe engravidou. Então aconteceu algo que eu nunca entendi quando ouvi a história, nem minha mãe. Quando ela engravidou, ele começou a ter fortes dores de cabeça. Ao procurar um médico, foi aconselhado a vir para São Paulo tratar-se, pois seu caso era grave. Ele preparou a viagem, deixou uma quantia em dinheiro com ela e prometeu voltar em no máximo 3 meses.
Na verdade, nunca mais voltou.

Anotações de um caipira .2

Vivi nesta casa maravilhosos anos! Acho que até a hora de minha morte me lembrarei da Rua Acre, da poeira vermelha que subia em redemoinhos, dos amigos, das bolinhas de gude, das tardes tranqüilas, simplesmente olhando as nuvens e imaginando milhões de figuras: soldados, cavalos, baleias, carros....Tudo isso eu via nas nuvens brancas, desenhadas em designer luxuoso no céu azul de Andradina. Com o tempo, o bairro cresceu e eu cresci junto com o bairro. Logo, minha mãe, que nessa época trabalhava como como bóia-fria, catando algodão nas plantações próximas pois era o único trabalho que sabia fazer, me matriculou numa pequena escola, na Rua Acre mesmo, que ficava dentro de um sítio de propriedade do seu Paulo Marinho. Infelizmente, esta escola não existe mais e o sitio do seu Paulo Marinho foi cortado por uma rodovia construída em 1973. Ali aprendi as primeiras letras com dona Doraci Trentin, minha primeira professora, ruivinha, cheia de sardas e linda, linda, que povoava meus sonhos de menino. Eu tinha tanta vontade de aprender a ler, que às vezes pegava um papel e fingia que lia. Talvez por isso tenha aprendido a ler com tanta rapidez e logo me destaquei como o melhor aluno da classe.

Lembro-me perfeitamente do primeiro dia de aula. Minha mãe me levou até a entrada da escolinha e chorei muito, talvez de medo, não sei bem porque. Levei um caderno dentro de uma sacolinha, uma espécie de embornal, feito especialmente para a ocasião. Naquela época, em 1970, havia na esquina da rua Acre com a rua Bandeirantes uma pequena mata. Às vezes eu não resistia e depois de voltar da escola, adentrava a matinha à procura de ninhos de passarinhos. Encontrei vários. Tenho este crime em minhas mãos: fui muito malvado com os passarinhos. Matei vários.

Lembro-me que as aulas dadas por dona Doraci eram ótimas. Havia estorinhas, havia brincadeiras, e como a escolinha ficava dentro de um pasto, nossas brincadeiras não raras vezes aconteciam entre as vacas do proprietário do sitio. Até hoje me lembro de algumas estorinhas ótimas, de príncipes e princesas, de dragões e guerreiros. Anos depois, em uma de minhas idas a Andradina, fiquei surpreso ao saber que dona Doraci ainda era viva (haviam dito que ela tinha falecido) e tentei de todas as maneiras descobrir o seu endereço. Foi com muita emoção que toquei a campainha da casa dela. Estava curioso em vê-la depois de 30 anos. De repente saiu da casa uma senhora, baixinha, gordinha, ruivinha...bem diferente da imagem que tinha da minha primeira professora. Ela ficou muito emocionada em saber que eu era. É claro que devido ao tempo, ela jamais me reconheceria, assim como certamente eu também não a reconheceria se a encontrasse aleatoriamente.

Chorou, minha querida professora, ao ver-me. Abracei-a singelamente e agradeci pela imensa fortuna que ela havia me dado: o dom de ler e escrever, de enxergar o mundo através das palavras, de engendrar pensamentos, de ter uma profissão, de ser homem e como homem, estar intrínseco neste mundo. Devo isso a ela. Devo a outros mestres, é claro, mas ela é especial porque foi a primeira. Meus outros professores, a quem também devo muito, já me pegaram alfabetizado. O trabalho foi muito mais fácil.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Anotações de um caipira .1

Uma das primeiras imagens que me lembro é de uma estradinha poeirenta que saía de nossa casa, subia uma pequena encosta e ia em direção à sede da fazenda. Sempre me recordo desta estrada cheia de sol, jamais com chuva, jamais enlameada. Nossa casa era de pau-á-pique, chão de terra e tinha um terreiro imenso na frente. Ali paravam os caminhões cheios de trabalhadores que meu avô contratava para a colheita do algodão. Eram homens sem eira nem beira, alguns encontrados sem rumo nas cidades vizinhas, mas que seduzidos pela oferta de trabalho vinham até a roça do meu avô.

Eles desciam do caminhão meio acabrunhados, e ficavam ali, esperando as ordens, qual a parte da roça seria trabalhada. Me recordo que, saindo de frente a nossa casa havia um algodoal imenso, um mar de brancura que se perdia na distância. Para mim, parecia não ter fim. Para os fundos da casa começava um varjão, palavra que definia a parte mais úmida da terra, em volta do rio, onde os cavalos do meu avô, levados pelos meus tios bebiam e eram lavados. Neste rio, certa vez, meu tio Nivaldo escorregou de uma cerca e prendeu a perna num arame, ficando pendurado por ela. O rasgo foi tamanho que chegava a uns quinze centímetros. E como ele não deixava tratar, com o tempo aquela ferida criou bichos, cheirava mal e se não fosse a insistência de minha avó, talvez ele teria perdido a perna. Acabou sendo tratado quase que à força em Valparaiso.

A sede da fazenda ficava longe, acho que uns cinco quilômetros, e tínhamos que atravessar uma região de terra bem vermelha (me lembro bem), até chegarmos à porteira da sede, que não era nada mais que uma casa grande, avarandada. Certa vez, ao tentarmos atravessar de volta para nossa casa, vindo da sede, minha mãe e eu levamos uma corrida de uma vaca recém parida. Minha mãe me segurava com uma das mãos e na outra levava um caldeirão cheio de laranjas. A vaca investiu e saímos correndo pelo pasto, eu sendo literalmente arrastado e as laranjas caindo atrás de nós. Só deu tempo de passarmos por baixo da cerca e a vaca freou, bufando, a poucos centímetros de nós. Essa imagem tenho até hoje: nós abaixados, próximos a cerca recém atravessada, e a vaca bufando, ciscando, querendo achar um jeito de pular a cerca, o que seria o nosso fim, certamente.

Minha família tinha vindo do estado de Alagoas na década de 50, tangidos pela seca e pelas péssimas condições de vida. Tinham vindo de caminhão por estradas esburacadas, lamacentas, e a viagem durou sete dias. Comeram frutas, rapadura, farinha, carne seca. Banho, nem pensar. Sofreram com o calor, a pouca água, a diarréia que imperava talvez devido a água estragada, mas chegaram em São Paulo. Ficaram na estação da Luz e em seguida foram colocados num trem que seguiu para a região de Andradina. Os fazendeiros contratavam os nordestinos para fazerem o trabalho de bestas, de colheita, limpeza e plantação, pagando salários miseráveis que eles aceitavam, agradecidos por terem um local para dormir e comida farta.

Meu avô, com o tempo, conseguiu ser meeiro, ou seja, um pedaço de terra para trabalhar e dividir meio a meio com o dono, o que conseguisse amealhar ali. O fazendeiro entrava com a terra e meu avô entrava com todo o resto: trabalho, sementes, colheita, venda.
Me lembro que apesar da casa humilde havia fartura de comida. Meus tios, quando queriam carne, pegavam uma espingarda e desciam até o riacho, matavam um pato e traziam para minha avó ou minha mãe preparar. Ovos havia à vontade. Comprava-se na cidade pouquíssimas coisas, como açúcar, roupa, calçado, remédio.

Minha mãe, assim como meus tios José e Antonio, cresceram labutando na roça. Minha mãe não estudou porque meu avô acreditava profundamente que uma moça de família não precisava saber ler e escrever. Se soubesse, podia escrever cartas para machos e certamente daí não sairia coisa boa. Meu tio José cedo descobriu seu pendor para a música e para o namoro, vivia escrevendo cartinhas apaixonadas para a professora e arrumou uma acordeon, de onde tirava algumas notas musicais. Logo que percebeu que a professorinha não se interessava por ele, largou a escola e concentrou-se na acordeon. Começou a participar de bailes na região, e descobriu que ser músico era altamente compensador na questão de namoro. Começou também a beber. Chegava em casa de madrugada, alegre, mas cheirando a cachaça, o que fazia meu avô dar-lhe boas surras. Não adiantou muito. Tornou-se rapidamente a ovelha negra da família.

Meu tio Antonio sempre foi um rapaz tranqüilo, calmo, metódico, um pouco ingênuo. Era um dos mais claros da família, tinha os olhos verdes e cabelos claros, como a minha mãe. Cuidava muito bem do estômago, era um pouco gordinho. Quando queria almoçar e não tinha carne, matava um pato, vigiava as galinhas para ver se botariam (enfiando um dedo no fiofó da coitada) e fugia de brigas. Quando completou quatorze anos exigiu e conseguiu que meu avô o mandasse para a cidade estudar. Mas meu avô deixou bem claro que não tinha como mantê-lo lá, pagando pensão ou hotel, então negociou com um conhecido que meu tio ficaria na cidade, hospedado na casa deste amigo e trabalharia por pão e moradia. Tinha que levantar às 4 da manhã, selar o cavalo, o carrinho e sair com o homem para entregar leite em casas da cidade. Voltava, almoçava e ia para a escola. Depois, à tardinha, tinha que trabalhar no sitio, cuidando de vacas, cavalos e na roça. Era uma vida dura. Assim mesmo, conseguiu ler e escrever razoavelmente bem.

Minha tia Cicera, a mais bela e protegida da família, foi enviada para Mirandópolis para aprender a ler e estudar corte e costura. Desde muito jovem, era faceira, namoradeira, passava horas penteando-se. Só não usava maquiagem porque naquela época, inicio da década de 60, numa fazenda do interior do estado de São Paulo, essa palavra sequer existia. Essa minha tia desde muito cedo mostrou-se muito sensual e meu avô, homem tremendamente rígido nos seus conceitos, deu-lhe inúmeras surras. Mas não adiantou muito, porque ela não mudou, obviamente, e com o passar do tempo acabou fazendo algumas coisas que o pobre do meu avô nem desconfiava.

Tenho algumas imagens meio nebulosas desta época. Eu devia ter uns 3 ou 4 anos. As coisas não andavam bem e aproximadamente em 1964, meu avô jogou a toalha e decidiu ir para a cidade. Escolheu Andradina, que das cidades mais próximas, era a mais promissora.
Nesta época, morávamos próximo às Três Alianças (Primeira, Segunda e Terceira Aliança), entre Valparaíso e Pereira Barreto. Há alguns anos atrás fui conhecer estas Alianças: povoados minúsculos, mas me ficou na cabeça uma igrejinha branca em Primeira Aliança, muito fotogênica, talvez um pouquinho melancólica.

Em uma das vezes que meu avô foi à cidade, creio que em Valparaiso, comprar alguns medicamentos e utensílios, conheceu um rapaz que procurava emprego. Ele estranhou a principio porque o rapaz era de boa aparência, não tinha a aparência maltratada dos trabalhadores braçais, sabia ler e escrever e estranhamente não tinha calos nas mãos. Decididamente era um tipo estranho...E tinha mania de leitura. Quando fecharam a contratação, meu avô pediu para que ele subisse no carrinho puxado a cavalo e o rapaz assim o fez, puxando para cima apenas uma malinha com poucas roupas e.... muitos livros. Isso deixou meu avô muito surpreso. Simpatizou com ele, falava bem, tinha um jeito tranqüilo e parecia faminto. Mal sabia meu avô que estava contratando o homem que lhe roubaria a filha e a abandonaria depois, grávida. Minha mãe Maria, a mais velha das filhas.
Aquele rapaz era o meu pai.



2. Chegada em Andradina


Chegamos em Andradina mais ou menos em 1966. Digo mais ou menos porque não me recordo da data correta. Meu avô, não sei como, acabou comprando um terreno na Rua Acre. Naquela época, a prefeitura facilitava a compra em dezenas de mensalidades e ele aproveitou a ocasião comprando um belo terreno de 20x25 metros, o que chamavam de “meia-data”. Como não tínhamos dinheiro e precisávamos ter um teto, ele acabou fazendo uma casinha de pau-a-pique, como tínhamos na fazenda e lá colocamos os poucos e velhos móveis.

O bairro tinha pouquíssimas casas, bem diferente de hoje. A maioria dos terrenos estavam desocupados, as ruas eram de terra, poucos vizinhos. Ficamos por ali. Meu avô conseguiu um emprego na Usina de Ilha Solteira que estava iniciando. Virou “barrageiro”. Levantava às 5 da manhã e esperava o caminhão da Camargo Correia. Não precisava levar marmita pois existia, na obra, o tal “bandeijão”. Meu avô era um homem duro, mas várias vezes me lembro dele olhando as mãos calejadas, maltratadas, apesar do uso de luvas na obra. Dá para imaginar como o trabalho era pesado.

Apareceu a oportunidade de se fazer uma casa de madeira. As madeiras que eram usadas na obra da Usina de Ilha Solteira eram depois jogadas em um local e as pessoas podiam pegar o que pudessem. Meu avô alugou um caminhãozinho e lá foram todos da família, minha mãe, tios e tias buscar a tal madeira. Até minha avó foi. Trouxeram o caminhão lotado de tábuas e assim, ele, junto com uns amigos e meus tios, construíram uma nova casa na parte da frente do terreno. Finalmente, teríamos uma casa bem construída, bem pintada, espaçosa. E com um jardim na frente, jardim onde cacei muitas borboletas. Malvadamente, eu as capturava e amarrava uma linha na bundinha das pobrezinhas e as fazia voar. Por quê as crianças são tão maldosas?

segunda-feira, janeiro 08, 2007

domingo, janeiro 07, 2007

Seria cômico se não fosse triste

O cãozinho é puxado pelo homem velho,
Magrinho, que atravessa o campo riscado por quadros cinzentos.
A cena seria cômica se não fosse triste:
O cão quase sem pêlos, o homem de pernas incertas,
Parecendo não saber qual a direção a tomar
Se arrastando lentamente pelo tempo.
A cena é eterna, poderia ser de 1800, 1900 ou 2000.
Poderia ser uma pintura, foto ou uma estátua,
Que a impressão seria a mesma:
A solidão de um homem e seu cão
Na estradinha ao lado da linha do trem,
Vacilante em seu andar, mortalmente ferido
Pelo marrom da tarde.

Molhado ou seco

No saibro rosado joga-se um ponto
Que cresce, transforma-se em dois.
Não se sabe se é molhado ou seco
Miúdas vagens de pequenos sóis.

A ferrugem pinta o trilho de marrom
Invadindo a textura da hora e do dia
Lamento longo de um homem pouco pintado
Que não se lembra mais para onde ia.

Abrindo a página do dia

O eterno vive em mim como um Deus insano
Como a batida de uma bola no muro;
Como um molde desenhado no toque efêmero do instante.

O eterno vive em mim, mas não vivo nele.
Herdei a fragilidade do espelho
O segundo precioso que me faz viver demasiado,
o cansaço da alma já violentada por tantos devires.

O eterno vive em mim mas também vive numa pedra
Numa poça de lama, no excremento largado na rua.
Não há saída nem pequenas soluções.
Não há meios soluços
que valham um poema.


Outubro/2002

No banco, de manhã

Exercício 1

O sentimento acende a centelha
Que palpita centro de emoções,
Corredores onde assustadas pessoas se cruzam.

É como
Um ancião sob as acácias, olhando
A linha distante de uma rua
Desenhada

Entre os fios do teu cabelo.

Exercício 2

Essa dor cruel nas vísceras
Esse desejo de carne jovem
A luta intensa que travo
Entre o corpo e o espírito.
Não há consolo, nem paz
Os campos floridos da juventude
São brasas em minhas mãos.
O amor é distração, o sol
Não se reflete
Só meu corpo arde.

Exercício 3

É difícil não dizer o que se sente.
Depois de tantas dúvidas
As coisas fluem como luzes
Além do carro, além de mim.
Joga-se as palavras
Como se fossem pedras
Mas bom seria se fossem flores.

Exercício 4

Vivo dizendo: “Estou cansado”.
Na verdade o limite está além do cansaço.
As mãos não tem repouso.
O corpo só repousa sobre outro corpo.
Estou cansado, mas são apenas palavras fúteis
Como são fúteis os amores passageiros.
A rua está em silêncio.
Oremos todos para que assim permaneça.

Sobre a reverência

Não lamento, apenas penso.
Se o que transfigura é o exato
Então as linhas são proporções
De outros corpos equivocados
Surgindo destes que agora vejo;

Se o que transfigura é o efeito
Os fenômenos ligados a nós
São meras estações enfeitadas
Onde partidas não ditam regras,
Nem exatas ou meias proporções.

Não lamento. Sei o que sou.
Exemplo inacabado de uma frase
Escrita e usada como fogo
Em extrema reverência.

Enigma

A porta sempre estava trancada, ele havia percebido isso, mas a pancada na cabeça da enfermeira e o roubo da chave que ela cuidadosamente levava consigo, resolvera o problema. O próximo passo era o corredor, um longo corredor que ele, apesar de estar ali há pelo menos trinta dias, estranhamente não tivera autorização para sequer ver. Desde o princípio ele havia desconfiado daquele hospital. Pior mesmo, era a completa falta de lembranças. Por mais que tentasse se lembrar de alguma coisa, não conseguia. Havia sempre o mesmo vazio em sua cabeça, a mesma sensação de que não havia passado, não havia do que se lembrar. Sua vida anterior àquele hospital parecida não ter existido Tentara conversar com a enfermeira, com o médico, um senhor sisudo que evitava olhá-lo nos olhos, mas eles evitavam conversar. Eram estritamente profissionais, caladões, passavam uma imagem de eficiência. Só depois de um certo tempo, começou a achar que aquilo não era profissionalismo. Desconfiou que era outra coisa, um certo pacto entre ambos para não comentarem nada. E ele desesperado, querendo saber como tinha ido parar ali, naquele hospital silencioso, que parecia não ter outros pacientes. E aquelas manchinhas em seu braço!... Haviam lhe dito que eram sinais de injeções que haviam lhe aplicado quando estava desmaiado, após o acidente que, segundo lhe contaram, ele foi vitima. Mas não eram sinais de injeções. Simplesmente porque eram por demais finas, com uma mancha roxa em volta, como se alguma coisa, não uma agulha, tivesse encostado e sugado seu sangue. O corredor estava ermo, não havia outras enfermeiras. Ele andava na ponta dos pés, sorrateiramente. Atravessou mais portas, outros corredores e não encontrou ninguém. Passou a confirmar suas suspeitas. Havia algo de estranho naquele hospital. Nunca vira um hospital sem enfermeiras andando de um lado para outro, sem médicos, sem macas, sem movimento. As palavras eram estas: sem movimento. Subitamente apareceu um homem que, ao vê-lo, fez um som de surpresa, mas desabou quando recebeu uma pancada na cabeça. Ele tinha conseguido retirar da cama um pedaço de ferro. Puxou o corpo, enfiou dentro de um armário e continuou andando, os pensamentos fluindo em sua cabeça. Acabou saindo em um quintal com algumas plantas e percebeu que teria de pular um muro com mais de dois metros de altura. Na primeira tentativa, não conseguiu. Tornou a pegar impulso e desta vez teve sucesso. Ofegante, já ia pular para o outro lado quando olhou para o céu e teve a plena certeza de que alguma coisa estava errada, muito errada. Não havia uma, mas sim duas luas imensas brilhando no céu inundado de estrelas.

sexta-feira, janeiro 05, 2007

Andradina, bairro de Santa Cecilia, perto do campinho

Em Santa Cecília alguns passarinhos foram mortos.
Era tarde, a ruazinha vermelha ainda persiste em minha mente,
assim como o apito do trem das onze horas que os mais velhos chamavam de Passageiro.
Em Santa Cecília alguns passarinhos foram mortos, pés de mamonas destruídos pelo andar maroto de um menino e seu estilingue.
Uma estrada de asfalto escuro foi construída, que cortou o sítio de minha tia em dois e onde cortei o pé num caco de vidro;
Onde, certa tarde, algumas meninas me mostraram a língua (uma delas chegou a levantar o vestido), um velhinho passou vendendo
Jabuticabas negras (ou seriam azuis?), estourei uma bombinha, quase fiquei surdo e notei o céu roxo-avermelhado para os lados de Planalto, pobre e abandonada vila de arbustos tristes.
Em Santa Cecília passarinhos foram mortos.
No bairro, um silêncio de fim de ano, de fim de tarde, o dia declinando no campinho da Rua Acre, perto da escola, onde hoje existe um conjunto de prédios e onde a grama sumiu, assim como as árvores e os ninhos de passarinhos.
Na Rua Bandeirantes, próximo ao Bar do Seu João, os carros circulavam e a poeira subia até a Rinha de Galo, fechada anos depois pela Prefeitura, para alegria dos galos e das esposas abandonadas.
Alguns pássaros, confesso, foram mortos. Seria bom que as coisas não se findassem, que a noite caisse rapidamente e o coração aflito do menino conseguisse a paz sonhada,
no seu pequeno quarto, entre gibis, livros e álbuns de figurinhas.

quinta-feira, janeiro 04, 2007

Sobre anos e vertigens

Começo o ano empurrando velhas matas, trilhando caminhos em frangalhos, rios sem peixes, um desastre inicial, um corpo inicial, uma desbotada rosa caprichosamente destacando-se no fundo azul do que virá e ainda não pressinto. Moço ainda descobri sesmarias abandonadas e insuportáveis, vagas cenas que um dia desejei e não tive. Suspensas, as semanas lembram-me livros, certas orgias de cores, algumas moças loiras escondidas em barris de mel. Certos romances que cessam e certamente cessarão, como a vida. O céu sem graça ainda desenha marcas que me ficarão no lento andado dos lentos dias, vazios para sempre.
Algumas furtivas contas foram lançadas além-fronteiras do calendário que compõe o corpo, imensa porta, nosso rótulo de carne e sonhos.
Pura dívida, saldo a pagar, vertigem e mergulho.

terça-feira, janeiro 02, 2007

No Ser mortal que sou, apenas

(Com o pensamento em minha mãe)


Não somente o tempo se confunde com as maçãs
Como bem alto, além das exortações e dos anjos
As lendas tornam-se verdadeiras e reais.
Não sou qualquer fato, nem desejo mais que mereço.
A linha do possível e do notável é a mesma linha
E a suspeita do que sou, imitação de prodígios
De quem conspirou e perdeu o tino dos versos.
Mas me disponho, como se dispõem os peixes
E me desfaço em coisas que não sei ao certo
Se enchem a terra
Ou se me secam
Onde hoje navego silenciosamente.

Discurso contra um Santo

Se acaso desço ao mundo
Que serei após as dálias,
Que serei após os cantos
Que serei eu, apenas
Carne e sangue, apenas
Olhos e chaves,
Que serei eu, afinal?

Se acaso construo um muro
Argutas plantas me desconstroem
Engenhosas matas me desenham
Quase um ponto inacessivel
De espanto e poderes
Um mensageiro a principio.

Mas se acaso percebo
Que não pertenço aos fundos
Dos precipícios e vales;
Se percebo que arrebato
As almas que passam,
Então a matéria vira caos
E escapa, incólume,
Pelas mãos entreabertas
De homem.

Poucos me vêem.